Stella F.. 15/02/2024
Deliciosos causos e superstições
Água funda
Ruth Guimarães - 2018 / 200 páginas – 34
“Ruth Guimarães narrou a saga penitente do mundo caipira do Sul de Minas e do Vale do Paraíba como a do Brasil do medo e do invisível. Em Água Funda, os opostos se materializam na Mãe de Ouro, o ente que, no drama de incertezas e da loucura de Joca, tece a teia de assombramento que costura a trama do livro. [..] A literatura de Ruth Guimarães inspira-se em sua vida na roça, a vida de sua família de caipiras paulistas e mineiros. [..] Dominava os costumes e os valores da peculiar sociabilidade do mundo caipira, destino dos grupos tribais capturados e arrastados pelo medo do inferno para dentro dos arcaísmos da sociedade colonial.” (Trecho da orelha do livro por José de Souza Martins – sucessor de Ruth Guimarães na cadeira 22 da Academia Paulista de Letras)
Um livro delicioso de ler! Livro de 1946, da primeira escritora negra na Academia Paulista de Letras.
Muitos causos, ditados, personagens, festas religiosas, superstições, amores.
Carolina é dona da fazenda e perde o marido. Dizem que é queixo duro, não volta atrás nas decisões. Tem uma filha Gertrudes que foge para ficar com o filho do capataz, e ela fica para morrer, mas mais tarde fará o mesmo e será julgada. Tem uma irmã Isabel e um irmão Miro, que fica às voltas com o transporte da cidade. Carolina vende a fazenda que fica para uma companhia que traz progressos para a cidade, e dá muitos empregos. Surge uma usina e outras novidades.
Em outro lapso de tempo, Joca é um importante personagem e agora está saindo com a Mariana, que é "perdida", mas gosta mesmo é da Curiango. Chegou na cidade um homem oferecendo trabalho no sertão para ganharem muito dinheiro. Alguns já se inscreveram, mas logo depois chegou de volta na cidade um personagem que foi passado para trás por um tipo parecido.
Aqui será ressaltado a questões tão conhecidas: a questão do trabalho escravo, da conta pendente na birosca do lugar, da dívida que o trabalhador já leva só aceitando viajar, e do tratamento insalubre que recebem.
Algumas vezes me perdi com os personagens, talvez os menos relevantes ou que aparecem esporadicamente, mas os principais guardei os nomes.
Gostei mais da segunda parte por ser mais dinâmica e ter alguns mistérios revelados. O principal deles, que gostei de acompanhar, foi saber que Choquinha, pobre, quase mendiga, sendo ajudada por todos, era na realidade uma personagem importante da primeira parte que havia sumido da narrativa.
“Já viu como lagarta vira borboleta? Elas são a mesma coisa, e ao mesmo tempo não são. Cada uma é uma. Sinhá andou o caminho de diante para trás. Foi a borboleta que virou lagarta. É por isso que eu digo: ela não veio mais a Olhos D´Água, nem em corpo, nem em espírito, nem em pensamento. O corpo não é o dela. É duma pobre velha pedideira de esmola. Ela era bonitona, inteligente, orgulhosa. Quebrava, mas não vergava. A Choca já é vergada e não endireita mais. Pode o povo dizer que as duas são uma pessoa só. São mesmo. Mas esta Choquinha não é aquela Sinhá.” (pg. 147)
Acompanhamos de perto a relação de Joca e Curiango e o envolvimento dele com a Mãe de Ouro. Sentindo-se perseguido pela entidade, o deixa fazendo coisas que ele nem se lembra ou passando por vários momentos de ausência. Infelizmente o personagem tem um final triste.
“- Não é nada do que você pensa O mal que eu sinto está aqui. Aqui e aqui – bateu no peito e na cabeça. – E no corpo inteiro, misturado com o sangue. O mal é um desapego. Não posso mais sentir nem pensar. Tudo se desmancha dentro de mim e eu não sinto; feito mardelazento, que perde os dedos, e está apodrecendo em vida e não sente nada. Aqui dentro, está vendo? Aqui dentro. Eu quero sentir tudo o que sentia: raiva, ciúme, desespero, ter vontade de brigar, como antigamente, e não tenho nada. Curiango vai e vem e não me importo. Só às vezes, sou um pouco do que era. Quando estou falando, meu sentido foge. Ela está me chamando, e qualquer dia, vou atrás dela por aí.” (pg. 130)
Um dos capítulos dá conta da situação final de cada personagem, relatando o que aconteceu com cada um deles.
Os ditos e aceitação da vida como ela é, são uma aula de paciência e conformidade. O que é para acontecer, acontece à nossa revelia, e na hora que deve acontecer, é o destino.
" Ninguém faça que não pague. Essa é a lei.” (pg. 146)