Pandora 02/11/2023Segundo livro que leio desta autora - o primeiro foi Contos Índios - e que delícia de escrita! Flui que nem água corrente.
Este é o primeiro romance de Ruth Guimarães, lançado em 1946, alguns meses antes do lançamento de Sagarana, de Guimarães Rosa. Foi sucesso de público e crítica e a jovem escritora nascida em Cachoeira Paulista passou a ser conhecida nacionalmente.
Água Funda se passa na região da fazenda Olhos d’Água, situada em algum lugar entre o sul de Minas e o Vale do Paraíba; primeiro no século XIX, em que Sinhá Carolina administra com braço de ferro sua propriedade e seus escravos e nos anos 1930, quando há uma usina no local, novas estradas estão sendo construídas e novos desafios são lançados ao povo daquela terra. Entre as duas épocas, acontecimentos que vão e voltam na linha do tempo. Aí têm destaque Joca, Curiango e uma série de personagens que nos aproximam do jeitão do interior, numa linguagem, que como definiu Antonio Candido em seu prefácio, é “uma linguagem suspensa entre o popular e o erudito, fazendo do livro obra que tem o timbre das realizações cheias de personalidade”. O narrador onipresente é uma figura à parte: assim como os contadores de histórias em volta da fogueira, ele vai nos envolvendo naquelas paragens e nas histórias daquela gente.
Como é natural em nossa terra, sobretudo nas comunidades rurais, a religião tem bastante influência; em Olhos d’Água o catolicismo se mistura às crendices populares, ao folclore, simpatias e pragas. “A interpenetração popular-erudito existe na própria concepção do livro (…). De tal maneira, que a história do par central pode ser lida tanto como consequência das vicissitudes comuns da vida, quanto como produtos de forças misteriosas encarnadas nos mitos intemporais.”
Esta dupla interpretação é tão forte na nossa sociedade, que ocorre nas conversas mais banais, ainda hoje, mesmo nas grandes cidades. Quem nunca ouviu que se algo não deu certo foi olho gordo, se deu certo foi por causa de muita reza?; quanta gente não faz simpatia, patuá, promessa?; não sobrevivem videntes, sensitivos e afins?
Mas para além do real e do místico, temos a história dessa gente e os anseios do corpo e da alma; suas mazelas individuais e as questões da comunidade e todo esse contar brejeiro, envolvente e prazeroso de Ruth Guimarães.
“A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada.” - pág. 53.