Luis 10/05/2015
Reversão de expectativas
Nunca li qualquer título da série Harry Potter. O máximo a que cheguei foi assistir aos filmes, embora não tenha completado a sequência (só fui até o penúltimo) e, mesmo assim, cheguei a dormir por alguns minutos dentro do cinema.
Há algum tempo, li uma interessante biografia de J.K. Rowling. Não deixa de ser uma interessante história de superação : Uma mulher recém separada, com uma filha pequena, desempregada, senta diariamente em um café onde cria uma das sagas infanto- juvenis mais bem sucedidas de todos os tempos, pontapé inicial de um verdadeiro império, que em poucos anos faria daquela jovem senhora uma das figuras mais conhecidas e ricas da Inglaterra. Nada mal e até que a história poderia terminar por aqui.
Mas Mrs. Rowling foi além. Em um gesto corajoso, encerrou a trajetória do bruxinho sem dó nem piedade e sem dar ouvidos aos pedidos de seus muitos fãs e, certamente, de seus satisfeitíssimos editores. O sétimo e último livro foi publicado em 2007. Cinco anos depois, cercada de grande expectativa, ela lança a sua primeira obra para adultos : Morte Súbita (Nova Fronteira, 2012).
A princípio, até pelo título, parece que a autora vai navegar pela estrada tranquila, larga e asfaltada dos best sellers, talvez num thriller com todos os ingredientes clichês do gênero. De fato, só a onda de interesse despertado pelo seu nome, já garantiria à obra lugar cativo em todas as listas dos dez mais. E aí é que está o grande barato da história. J.K. Rowling escreveu um grande livro, em todos os sentidos, e, definitivamente, para quem ainda duvidava, mostrou que é de fato uma Escritora com e maiúsculo, longe de ser refém de um personagem ou de uma fórmula.
A história gira em torno da disputa por uma vaga no conselho comunitário de uma pequena cidade inglesa, vaga essa aberta pela morte súbita de um de seus titulares, Barry Fairbrother que, embora saia de cena logo no início, é de fato o personagem mais importante do enredo. Barry tinha como principal traço de sua atuação a defesa de uma localidade pobre da cidade, onde a municipalidade bancava a permanência de uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. A guerra fria entre os partidários pró Barry e seus opositores é a espinha central para os dramas e conflitos explorados com maestria pela mãe de Harry Potter.
Entre o farto elenco de personagens inesquecíveis, destaca-se o obeso e conservador Howard Mollinson, Presidente do Conselho e principal antagonista de Barry. Casado com Ruth, após a morte do conselheiro Fairbrother começa a manobrar nos bastidores para garantir a eleição de seu filho, Miles, um próspero advogado da comunidade casado com Samantha. A infelicidade do casal de meia idade Miles-Samantha, expresso pela monotonia sexual que leva a mulher a criar fantasias com os ídolos musicais de sua filha adolescente, oferece uma das grandes tramas paralelas do romance.
Enfrentando Miles, há a figura ambígua do atormentado Colin Wall e sua esposa Tessa. Educadores, amigos de longa data de Barry, querem a todo custo defender o seu legado através da candidatura de Colin. O casal tem uma relação conflituosa com o filho rebelde, Stuart, conhecido como Bola e que tem como grande amigo o jovem Andrew Price com quem divide segredos e experiências típicas da idade. O pai de Andrew, o violento Simon, submete a família, composta ainda do filho mais novo e da esposa, a um verdadeiro regime de terror. Simon também postula, embora com interesses escusos, a vaga no conselho.
Rowling aborda ainda a delicada questão da intolerância ao criar uma família de origem indiana, os Jawanda, composta de um casal de médicos (cuja a mulher, Parminder, também é conselheira associada à corrente de Barry) que tem três filhos, entre elas a sensível Sukhvinder que sofre em silêncio com o terrível bullying de que é vítima na escola, notadamente por parte de Bola.
O núcleo principal ainda traz Gavin Hugles, sócio de Miles e Kay, sua namorada, assistente social, que larga uma vida estabelecida em Londres para se mudar para a cidade na esperança de engatar um relacionamento estável com Gavin, cujo desinteresse por essa hipótese é notável, para grande decepção de Kay. Ao longo do livro, vê-se que o desprezo que Gavin destina à namorada é inversamente proporcional à dedicação dirigida à Mary, viúva de Fairbrother...
Kay também tem uma filha adolescente, a linda e autoconfiante Gaia, que logo de cara encanta o jovem Price e se torna praticamente a única amiga da depressiva Sukhvinder.
De todas as criações de Rowling, talvez a mais emblemática seja a atormentada Krystall, jovem protegida de Barry, que a colocou em sua equipe feminina de remo, no qual era treinador. Moradora da parte “pobre” da cidade e filha de uma das dependentes que se tratam na clínica que o conselho quer fechar, Krystall vive imersa em um estado de quase delinquência, em que vê a mãe, desesperada em sua busca por drogas, refém de um traficante para quem vive fazendo favores ou se prostituindo, relegando ao quase abandono a filha e o irmão menor, Robbie, de talvez uns 3 anos. A família é acompanhada por Kay em seu trabalho na Assistência Social. A descrição de sua visita à casa da adolescente, com toda a força narrativa oriunda dos detalhes sobre a sordidez do ambiente, incluindo o pouco cuidado com o menino Robbie, embora beire a repulsa, é um dos grandes momentos do livro.
No todo, J.K Rowling surpreende ao se aproximar da temática de alguns dos grandes escritores contemporâneos. No caso de “Morte Súbita”, é perceptível uma leve influência de John Updike ou mesmo de Tom Wolfe, transportando a criação de grandes painéis da sociedade americana para o outro lado do Atlântico.
A promissora estreia da autora no mundo da literatura “adulta”, deixa claro que a criadora de Harry Potter tem muito mais a dizer, ou a escrever, do que sagas mágicas sobre pequenos bruxos. Nesse sentido, “Morte Súbita” parece ter sido escrito com uma varinha de condão.