spoiler visualizarAndrey.Jandison 23/02/2021
Barba ensopada de sangue é um livro atmosférico que consegue com fluidez te puxar pra dentro dele, sem pressa e espalhando detalhes em toda a narrativa sobre os personagens de forma que a construção deles, de seus rostos e suas identidades, no final, é tarefa do leitor. Aqui temos um homem que não consegue lembrar dos rostos das pessoas (nem o seu próprio) numa jornada de autoconhecimento numa cidadezinha do sul. Apesar da narrativa ser lenta, até um pouco arrastada em alguns momentos, a transformação acontece tanto no espaço exterior quanto no interior: começamos no fim do verão e o protagonista com energia e alguns questionamentos, e com o passar da narrativa ele vai se deteriorando enquanto o clima em Garopaba fica mais frio. O livro se equilibra em dualidades, ora passa uma frieza da solidão e ora um calor em momentos de afeto entre os personagens, ora tudo está denso e obscuro e ora há uma leveza de cotidiano.
O primeiro capítulo me deixou de queixo caído pela sua força e sua brutalidade crua: um pai que anuncia ao filho que vais e matar é uma imagem forte, e o ponto alto do livro são os diálogos, cinematográficos, que constroem a cena inteira e fazem os personagens tomarem vida em seus olhos. Falando em personagens, há dois em que eu prestei muita atenção: Berta, a cachorra, que durante o livro inteiro tem um incrível processo de superação (no começo do livro, ela também estava em luto), até o momento em que mancando ela encontra o caminho de volta pra casa. No fim, tanto o protagonista quando ela conseguem se reerguer entre as ondas, na água, que é onde ela se cura do atropelamento que sofreu e o protagonista renasce depois de cair de um morro.
Tem tantos temas que é difícil apontar, mas em relação a identidade do protagonista há dois momentos que me tocaram muito: quando ele encontra o velho na caverna e eles parecem um duplo um do outro, o velho afastado, isolado, indiferente ao mundo que se constrói lá fora (apesar de que nessa cena eu fiquei com uma grande interrogação na cabeça o tempo todo, e estou até agora pra ser sincero). E depois que ele nada tentando sobreviver e enquanto busca um machucado e seu corpo o rapaz que o ajuda diz “não há nada no seu rosto”.
O final do livro é excelente, e ao voltar para as primeiras páginas percebemos que o livro se trata também da construção de um mito, no começo temos uma descrição sobre o que o sobrinho do protagonista sabe sobre ele, e é parecido com o que o próprio sabia sobre seu avô. Nós sabemos a trajetória do homem e observamos tudo se construindo, e mesmo assim não entendemos tudo, suas motivações são misteriosas. A mensagem que ficou pra mim é que ao tentar traçar a vida de quem já se foi, ou observar uma que se dispõem a nossa frente (nós leitores lendo a historia do homem), nunca vamos conseguir entender por completo a jornada de motivações, escolhas e acontecimentos da vida de alguém.