gleicepcouto 26/01/2013A natureza humana narrada em um simplicidade desconcertantehttp://murmuriospessoais.com/?p=5763
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Barba Ensopada de Sangue (Cia das Letras) é o quarto romance de Daniel Galera, escritor e tradutor literário brasileiro. Ele foi um dos precursores do uso da internet para a literatura, editando e publicando textos em portais e fanzines eletrônicos entre 1997 e 2001. Já traduziu 13 livros, predominantemente das novas gerações de autores ingleses e norte-americanos; e participou em algumas antologias de contos. Seu penúltimo livro, Cordilheira, ganhou o Prêmio Machado de Assis de Romance, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional em 2008, além do 3° lugar do Prêmio Jabuti.
Nesse lançamento, Galera narra a história de um professor de educação física que, após a morte do pai, vai para um balneário em Santa Catarina. Ele vai em busca de respostas para a morte sem explicação de seu avô que lá morava. Como companhia, leva a cadela do falecido pai, a Beta – que, ele prometeu sacrificar. Aos poucos, o professor vai se relacionando com a comunidade local, mesmo com um pouco de dificuldade – já que tem uma condição neurológica congênita que o obriga a interagir com as outras pessoas de um modo peculiar. Gradativamente, ele vai não só descobrindo as respostas para a morte de seu avô, mas também as para a sua própria vida.
"Não tem nada mais ridículo do que uma pessoa tentando convencer a outra. Trabalhei com persuasão minha vida toda, a persuasão é o maior câncer do comportamento humano. Ninguém nunca devia ser convencido de nada. As pessoas sabem o que querem e sabem do que precisam. Sei disso porque sempre fui especialista em persuadir e inventar necessidades."
Ah, quisera eu ter lido algo do Daniel Galera antes. Já conhecia o autor de nome, claro, mas ainda não tinha tido a oportunidade de ler um livro dele. Sinto como se tivesse perdido um tempo precioso navegando por uma literatura nacional oca e desprovida de vida; enquanto que o talento estava a apenas alguns centímetros de minhas mãos. Mas tudo bem, o importante é que me deparei com o autor. Antes tarde do que nunca.
A narrativa de Galera é marcada pela espontaneidade, mas sem perder o foco. Ele sabe para onde está indo, mas é como se deixasse espaços para improvisos e mudanças na rota da história, para logo depois retornar ao caminho inicial. Basicamente, há frescor em seu texto. Vida. Vai além de uma história contada no papel.
E esse realismo da obra de Daniel vem pincelado com uma leve fantasia. Sempre paira uma dúvida no ar se um fato é realidade ou faz parte da imaginação do personagem, ou se, até mesmo, há algo de sobrenatural. Essa ambiguidade dá um clima de thriller à obra, que, no geral, é constituída de uma simplicidade desconcertante por conta das descrições sem excessos do cotidiano.
O ponto alvo é a forma sensível como a natureza humana é evidenciada. Galera expõe o lado complexo do ser humano com intensidade. Aqui vemos o seu melhor lado, através do amor, amizade, companheirismo; mas também o pior, com toda sua mesquinhez, brutalidade, ignorância. Como resultado, temos um livro intenso, que, como um reflexo de espelho, faz o leitor olhar para dentro e se autoanalisar.
Nem mesmo a ausência de indicação de diálogos (aspas ou travessões) faz com que o leitor se perca. Inicialmente, pode causar desconforto, mas não passa disso – até porque o conteúdo dos diálogos é de uma eloquência ímpar. Galera usa uma linguagem moderna e coloquial, abraçando gírias regionais. Ele faz isso com cautela, porém, não colocando em xeque o compreendimento do livro. Um outro recurso interessante utilizado pelo autor são as notas de roda-pé, que funcionam, pertinentemente, como uma espécie de complemento à história.
Os personagens são bem desenvolvidos, possuindo diversas nuances. O modo como interagem com o protagonista indica os vários tipos de relacionamentos que temos ao longo da vida. Seja com familiares, amigos, amores e até mesmo animais de estimação. Em todas essas vertentes, o autor consegue nos emocionar com a sensibilidade narrativa que impetrou na história. Aliás, só o fato de não ter nomeado o protagonista, assim como também a sua condição neurológica, podem apontar diversas coisas. Uma delas, a dificuldade do ser humano reconhecer a si próprio – sendo a imagem e o nome fatores não determinantes para que esse objetivo seja alcançado.
Barba Ensopada de Sangue, por fim, é uma trama, por demais, original. Repleta de tensão entre o interior e o exterior ao homem, Galera conseguiu unir assuntos introspectivos a entretenimento substancial. Como disse lá no início, decreto aqui o início do meu desbravamento de águas mais profundas e ricas na literatura nacional contemporânea. Daniel Galera foi a primeira “terra abastada” que descobri. Que venham outras.