Rub.88 07/07/2019A Tua Cara Me É Estranha...A incapacidade de reconhecer rostos e de por consequência guarda-los na memoria é chamada clinicamente de prosopagnosia. Uma condição congênita e possivelmente hereditária. Entendesse o formato específico das partes que compõe uma face, mas não se consegue juntar tudo e identificar como uma cara individual e única no mundo. Outras características, como voz, modo de movimentar corpo e o gestual com as mãos, altura e peso, cortes de cabelos servem para se reconhecer as pessoas à segunda vista.
No romance Barba Ensopada de Sangue do nascido em São Paulo, mas criado em Porto Alegre Daniel Galera, o personagem principal vive com essa cegueira para feições.
Depois de um malogrado relacionamento romântico o protagonista vai falar com o pai que não vê há algum tempo. E lá sem rodeos o velho diz que vai se matar e qualquer tentativa de revogar essa decisão é inútil. Ele só pede uma coisa ao filho, que dê fim na velha cachorra com quem partilhou os últimos e solitários anos de vida. O animal vai fenecer de tristeza depois que eu me for, o pai fala, e eu não tenho coragem de fazer eu mesmo isso. O filho concorda e não fala para o resto da família, a mãe que já está consolidada em outro relacionamento e para o irmão que odeia, os planos do pai. Tudo acertado os dois relaxam tomando chimarrão, e durante a conversa de despedida o velho conta uma estória curiosa sobre o próprio pai. De como foi morto numa cidadezinha praieira chamada Garopaba que fica no sul de Santa Catarina. Uma foto antiga é desencavada e tem muita semelhança com o neto. Nunca contei nada disso, pois é muito obscuro o que aconteceu, continua pai a intervalos de chupada na bomba do mate. Cheguei lá e já tinham enterrado. O homem era violento e ultimamente puxava a faca para qualquer entrevero. Teve o que procurava, acho...
O neto vai embora com a foto velha e com essa estória na cabeça. Depois do evento traumático, ele em vez de cumprir o desejo final do pai, leva a cadela para um ano sabático na praia, que claro, e na cidade catarinense.
Encontra um lugar para morar a beira mar. Pagou adiantados 12 meses de aluguel para a proprietária que conhece bem esses tipos de pessoas que querem acorda e dormir ouvindo o barulho das ondas. São uns saudosistas de uma vida que não tiveram e enjoam rápido ou ficam doidas.
O personagem central é professor de natação e atleta de triathlon. Arruma rápido um emprego numa academia com piscina aquecida interna. Vive modicamente com a cachorra que não morreu de tristeza, e na convivência com os nativos vai fazendo uma vez ou outra pergunta sobre uma morte estranha acontecida ali há muitos anos. Fala o nome do avô paterno e isso causa constrangimento e medo nos que tem idade para ter ouvindo falar de tal causo. Todos mudam de assunto rápido e aconselham a não mexer nessas coisas antigas.
As semanas passam e ele vai participando dos eventos da cidadezinha que sofre de falta acontecimentos na pôs temporada. Arranja namoradas e casos por que simplesmente é um pica doce. Empresta dinheiro a todo o momento e ninguém paga de volta. A cachorra de 15 anos é atropelada, não morre por conveniência do enredo e passa a quase se arrastar atrás dele. Ambos mergulham no mar como terapia contra as vicissitudes do mundo seco. Faz um amigo para vida toda que tem uma pousada e ideias transcendentais mal apoiadas no budismo. Pequenos programas como ir ao circo, a uma festa, a pescaria submarina, a quermesse preenchem dezenas de paginas somente pelo poder descritivo do pitoresco.
Quando ele se lembra da curiosidade que tinha sobre o assassinado do avô, vai a poucos lugares para investigar pistas e acaba recebendo depoimentos diretos num atropelo de meia pagina. Um monte de informações detalhadas e depois de volta a gaveta do esquecimento. Não há um continuo interesse com o que aconteceu com o parente esquecido. A vida vai seguindo e nada se conecta. Muito corrida na praia e braçada oceano adentro. Pedidos de desculpas por não reconhecer pessoas devido ao seu problema neural ocasionam muitas descrições de rostos que ocupam linhas e mais linhas.
No terço derradeiro do livro bate a brisa do mendigo do mato da cachorra manca no infeliz. O cara simplesmente sai num dia de chuva de matar baleia afogada e se embrenha por morros e praias desertas sem motivo nenhum. Vai viver ao relento úmido com a pobre cadela a tiracolo. Ai eu desisti de levar o livro a serio.
Acho que faltou um editor pulso firme nesta obra. Emagreceria muitas cenas, cortaria redundâncias e limaria o epilogo constrangedor de novela das seis que tem no final do livro. Não há travessões para indicar diálogos o que deixou muita coisa confusa e tem algo ainda que eu nunca tinha visto na minha vivencia entre livros. Asteriscos para dar complemento à narrativa. Veja bem, eu não disse indicações de nota de roda pé, e sim sinais que levam o leitor para um parêntesis enorme que faz parte da ficção da estória! Porque isso não estava já no corpo do texto em si e algo que eu não compreendi. Talvez estética sem nenhum efeito prático.
O livro parece feito de núcleos narrativos episódicos. E às vezes um esbarra noutro. O autor explica a situação do personagem, que como o verbo esta no presente, modo indicativo, não sai um minuto da visão, sabe identificar um nariz específico, o formato da boca e a cor dos olhos de uma pessoa, porem não consegue guardar o conjunto como um rosto formado. Isso explica o que estória de Barba Ensopada de Sangue foi para mim. Partes separadas que não constituíram um romance. Se foi proposital eu não sei e não gostei. Pode parece maldade minha ou exagero da critica, mas a imagem ficou na minha cabeça eu tenho que falar. O Senhor Batata, aquele mesmo do Toy Story. Desencaixa e troca os itens da cara para dar novas feições e reações do brinquedo. Mas ainda assim é uma batata de mentira...