Newton Nitro 21/12/2014
Autoconhecimento versus Autoesquecimento nesse romance sensacional de Daniel Galera!
Barba Ensopada de Sangue é o quarto romance de Daniel Galera, e minha primeira leitura do autor, de quem ouvi falar muito bem pelos blogs de literatura internerd a fora. Mas não sabia que iria gostar tanto do seu livro, uma espécie de Heart of Darkness tropical, uma jornada de autoconhecimento ou autoesquecimento bem brasileira.
Motivado pela morte do pai e pelo mistério que circunda a morte de seu avô, o protagonista, um professor de educação física que nunca ganha nome na narrativa, sendo chamado sempre de “ele”, segue para Garopaba, uma cidade litorânea em Santa Catarina, um local turístico com praias paradisíacas como centenas de outras pelo Brasil. A partir dessa premissa, a narrativa perambula entre o cotidiano da vida “fora de estação” na cidade de Garopaba e a procura sobre a verdade sobre o avô.
Com essa espinha narrativa, Galera mergulha o leitor no universo particular de Garopaba com grande precisão, perfurando as ilusões metropolitanas da suposta vida paradisíaca em uma cidade praiana no Brasil, mas com realismo, sem cair no melodrama. Mães solteiras que se drogam em festas à noite e que ralam nos restaurantes e lanchonetes que servem turistas, kiosqueiros budistas que enchem a cara e pedem dinheiro junto de tiradas filosóficas, a depressão e o sofrimento que vêem à tona nos habitantes nos períodos da baixa temporada, a mistura de violência, hedonismo, complacência e resignação dos nativos, o surrealismo dos confrontos de um período de eleições em uma cidade pequena, as novas configurações das neuroses urbanas da classe média urbana radicada nesse suposto “paraíso tropical”, a cultura dos “malucos BR” e a camada de tensão “nativos-versus-de-fora” que existe sob a película de cordialidade brasileira, prestes a se irromper, permeiam a narrativa de investigação criando uma espécie de noir-existencialista-tropical.
Ou seja, DOIDIMAIS VÉI!
Técnicas Literárias:
O romance tem um meio falso começo-meio prólogo em primeira pessoa, narrando eventos pós-narrativa e depois entra de cabeça na narrativa em terceira pessoa limitada, mas sem nunca revelar o nome do protagonista.
Monólogos interiores e memórias se misturam nas cenas, transições de tempo bem feitas, e um POV narrativo desafiador, pois o protagonista tem prosopagnosia, é incapaz de reconhecer rostos.
Os diálogos, muito bem feitos por sinal, e não possuem marcadores (”disse”, “respondeu”, etc.), e muitas vezes se misturam no texto, bem ao estilo do Cormac McCarthy e vários outros autores contemporâneos.
Personagens bem construídos, com destaque para a cachorra Beta, que adorei. A pressão narrativa da vida emocional e na angústia do protagonista foi construída aos poucos, por camadas, pacientemente, até transbordar no clímax mitológico da história.
Detalhismo nihilista à moda do David Foster Wallace reforçando a falta de sentido e o absurdo dentro da vida contemporânea.
A narrativa é feita em tempo presente, que dá um certo imediatismo e contrasta com os tempos do passado no prólogo e outras interjeições de textos em itálicos narrados em primeira pessoa.
Descrições dinâmicas, algumas até poéticas e muito bem feitas, ressaltando detalhes específicos, mostrando mais do que contando e envolvendo os sentidos.
Temas, tropos e referências:
A narrativa mistura jornada de autoconhecimento e auto esquecimento, um processo de mitologização do protagonista (o processo de formação de uma lenda ou mito pessoal.
A jornada do civilizado para o selvagem (que me lembrou Heart of Darkness) é bem clara, e marcada por vários símbolos (a barba, o comportamento do protagonista, até mesmo sua linguagem muda ao longo da narrativa).
O estado de alienação, marcado no protagonista biologicamente com a prosopagnosia, junto com o perambular sem destino do protagonista lembra as narrativas existencialistas dos anos 50 e 60, o protagonista é mais um “estrangeiro” de Camus.
A narrativa lida também com existencialismo, nihilismo, budismo, a questão do destino versus livre arbítrio, a ilusão da identidade pessoal, a ilusão das memórias, ego e a violência psíquica de quando tentamos persuadir o outro.
E mais uma vez ressoa a dificuldade de sentir, de ter sentimentos autênticos e não simulados, e a busca desesperada pela experiência emocional do real sem nenhum tipo de filtro, que é o drama contemporâneo que mais aparece na maioria das expressões artísticas dos últimos vinte anos.
O protagonista me lembrou o Louco do tarô, andando a esmo com seu cachorro, guiado pela falsa dicotomia do destino e do livre-arbítrio. O companheiro animal também me fez lembrar Ulisses (junto com toda as imagens de mar, jornada, praia, barco, bote, etc. E em uma relação muito doida, porque fiz a leitura a pouco tempo, o protagonista me pareceu uma versão mais humana do Lester Ballard, o monstro barbudo e violento do Child of God, do Cormac McCarthy, mas que encontra uma forma de interromper a descida completa à pura selvageria, acredito, por conseguir refazer sua ligação emocional com a humanidade.
O romance tem versões subvertidas do tropo do Encontro com o Mestre, um desses encontros é moralmente ambíguo e o outro é violento e inesperado. Curti demais!
Recomendo o livro, é muito bom, não consegui parar de ler! Só um toque, Barba Ensopada tem uma pegada mais literária, com várias tangentes narrativas explorando o passado do protagonista, sua busca de identidade, o universo de Garopaba, seus relacionamentos, etc. e muitas delas sem fechamento, em uma imersão imagética meio cinematográfica mesmo. Eu curto, é um estilo mais na tradição dos "romances de fôlego" norte americanos (David Foster Wallace, Cormac McCarthy, Pynchon, etc.). Esteja avisado!
É um romance para fazer pensar e que dá vontade (misturada com um pouco de medo) de conhecer Garopaba. Medo porque, imagina você andando na praia e encontrar um véio barbudo lhe oferecendo flores, saiba que isso não é Impulse (piadinha para os tiozões anos 80!). Vai por mim, sai correndo e só pare em Porto Alegre vééééi! :)