spoiler visualizarBrujo 11/04/2024
A Cultura Overman
Lançado em 1971 sob o nome original de "The Overman Culture", "A Humanidade Artificial" é um livro escrito pelo desconhecido Edmund Cooper e lançado no Brasil pela editora Hemus, responsável por uma coleção bastante respeitável de lançamentos de Sci-fi de autores pouco conhecidos por nós brasileiros.
Como nunca ouvi falar nada desta obra em minhas pesquisas sobre ficção científica, confesso que peguei esse livro sem nenhuma expectativa. E qual foi a minha surpresa ao notar que a trama se utiliza de conceitos que hoje são considerados clichês, mas em uma época em que estas ideias ainda tinham um grande frescor ! Para terem uma ideia, este livro antecipa o conceito de mundo de mentira de "O Show de Truman", antecipa o despertar para o mundo real (e toda essa ideia da Mitologia da Caverna de Platão) de "Matrix", antecipa as máquinas retratadas como seres humanos perfeitos de "Westworld" (mas que já tinham aparecido antes em livros do PKD e do Ray Bradbury) e antecipa também a ideia de inteligências artificiais tomando consciência de "Neuromancer". Provavelmente há outros exemplos nas quais eu não pensei, mas já deu pra ter uma boa ideia do que esse livro reserva.
A história acompanha Mickael Faraday (nome familiar?) em sua infância e fase inicial de sua vida adulta. Ele vive na Londres dos anos 40, com uma família e lar comuns. Aparentemente!
No melhor estilo da série "Lost", esse ambiente inicialmente comum e mundano começa cada vez mais a apresentar certas incongruências: Desde muito pequeno, Michael nota que existem dois tipos de pessoas: a minoria que sangra quando se machuca (apelidados por ele de "Frágeis") e aqueles que não sangram (chamados de "Ossos-Secos"); Michael e todos os Frágeis percebem que os adultos fazem um grande esforço para mantê-los na mais perfeita ignorância e letargia, não ensinando conceitos básicos como a leitura, por exemplo; o ambiente da história, como eu disse anteriormente, é uma Londres da década de 40, mas é dito no livro que a Rússia possui uma base de mísseis na Lua e que Londres é protegida por uma redoma enérgica, contra a Segunda Guerra Mundial que acontece do lado de fora, apesar dos personagens nunca terem visto tropas militares em suas vidas; Então, basicamente, a história se desenrola com Michael e seus amigos (auto-denominados de "A Família") explorando o mundo ao redor para solucionar os mistérios que os rondam. E eles não descansarão até descobrirem toda verdade.
Um ponto legal de se ressaltar é a transição do clima do livro (na falta de expressão melhor). A história inicia com uma vibe meio "Goonies" ou "Conta Comigo", com A Família saindo para fazer explorações e diversas descobertas. E, aos poucos, os elementos de sci-fi vão aparecendo na história, de forma crescente e gradativa, culminando em um plot-twist ao melhor estilo de Matrix!
Há 2 subtextos que também são bem interessantes. O primeiro é a relação entre pais e filhos. Todos os chamados Frágeis basicamente suspeitam do tratamento que seus pais lhe dão, o que gera atritos entre eles. Eventualmente é provado que as suspeitas têm fundamento (após a revelação do plot-twist que mencionei antes...) e os frágeis se revoltam contra seus pais e rompem com eles, em uma cena bem legal, encabeçada por Michael. E me veio à cabeça que o livro foi escrito entre 70/71, com o movimento hippie protestando contra as guerras, seguidos pela era de ouro do rock 'n' roll e o surgimento de gigantes como Led Zeppelin, Black Sabbath ou Pink Floyd, todas elas transgressoras para os padrões da época. Então, penso que parte da trama desse livro pode sim ser um reflexo da relação entre pais e filhos desta época.
E o segundo subtexto que me encantou no livro foi este: o enredo TRANSBORDA admiração pelos livros, pela sede de conhecimento e por todos os grandes escritores e intelectuais!! E isso me pegou em cheio ! Por exemplo, os integrantes da Família possuem todos nomes de intelectuais como Michael Faraday, Emily Bronte, Ernest Rutherford ou Jane Austen (algo parecido rolava em "Lost", lembram de John Locke ?) - havendo obviamente uma explicação para isso. Outro exemplo é quando Michael e sua turma encontram uma biblioteca abandonada em uma de suas explorações. Como eles não tinham contato com livros ou com a leitura, aquele lugar exerce um fascínio neles muito grande, que só aumenta com o decorrer da história. Para ilustrar, segue abaixo a transcrição de um trecho contido na página final do livro:
"Os olhos de Ernest estavam brilhando. - Uma universidade - ele murmurou - uma fortaleza da ciência, um lugar onde a mente pode se expandir... Apanhei um livro na biblioteca, Michael. Seu título é Utopia. Estava repleto de conceitos maravilhosos e fantásticos a respeito de educação, liberdade, união e propriedade comunitária... Você acha que poderíamos chamar nossa universidade de Utopia?
Michael sorriu: - Por que não? A raça humana é tão minúscula que precisa de ideais heróicos para se manter aquecida." Lindo, não?
Para finalizar, vou tentar resumir o que ocorre na história: acontece que Michael descobre que a humanidade desapareceu da Terra há cerca de 10.000 anos. A raça humana criou máquinas de calcular, que evoluíram para IA's, que primeiro primeiro passaram a controlar aspectos cada vez mais importantes da sociedade até se tornarem concientes (olha Neuromancer aí). À partir daí, eles se tornaram competidores da humanidade. É dito que os humanos acabam se destruindo (por eles mesmos e com uma pequena ajuda das máquinas), restando no.mundo apenas um religioso multimilionário e suas duas esposas em uma câmara que conserva seus corpos e tem um banco de material genético.
Com o passar do tempo, as IA's concientes acabam perdendo o propósito de existir e percebem que só a raça humana poderia trazer isso de volta e, utilizando o material genético da câmara, criam Michael e seus 40 e poucos amigos Frágeis, denominados de "Cultura Overman" (em homenagem ao construtor da câmara, Julius Overman) ou a Segunda Humanidade. De explodir a cabeça!!!!
Enfim, finalizo aqui esta resenha reafirmando o quão grande foi a minha felicidade em encontrar uma gema rara como essa e tão pouco falada.
E, por mais impossível que isso possa parecer, quero muito que algum figurão de Hollywood encontre esse livro, compre os direitos e dê nas mãos do Nolan ou do Villeneuve, que será um sucesso garantido !!!
TS:
Magic Pie - Circus of Life (2007)
Virus - Toughts (1971)
Neil Merryweather - Space Rangers (1974)
Neil Merryweather - Kryptonite (1975)