Irlan Alves 14/08/2017
O rio corre e muda. A cada segundo: mudança. Existem segundos em que uma pequena formiga adentra as águas caudalosas, afoga-se, morre, e o rio já não é o mesmo. Existem segundos em que um homem pelado grita a plenos pulmões à vida e o rio, ouvindo cuidadosamente tem seu curso e o volume de águas gravemente alterados. O homem gritava poesia, gritava e criava o novo, plantava relva capim grama mato no coração daquela força natural eterna em finitude. Plantava relva capim grama mato onde nascia e todo conteúdo posterior viria a ser outro. O grito e o passo e o riso foram ouvidos.
Não é absurdo pensar em Whitman como um profeta; sua obra pouco foi ouvida (ouvida, pois rítmica como é deve ser lida em voz alta) em seu tempo. A mensagem, um verdadeiro bálsamo de vida, foi propagada por alguns poucos bons apóstolos (ainda que alguns fossem, à época, mais conhecidos que ele, como é o caso de Waldo Emerson). Poucos foram os homens em contato com a ode à vida whitminiana. Ele morreu pouco reconhecido para um homem que engendrou tamanha revolução: “Não ganhei a aceitação em meu próprio tempo, mas tenho tido bons sonhos quanto ao futuro...”. O valor de Folhas de Relva, escreveu, “será decidido em seu devido tempo”. E foi. Hoje é tido como pioneiro no estilo de poesia livre, solta, proseada. É tido com importância absurda pelos americanos, a formação do país se confunde com a poesia e os manifestos políticos de Whitman, afinal, o século XIX com seu destino manifesto e a expansão americana para o oeste e todas as inovações tecnológicas e científicas e políticas, foi uma época de ouro para o país. Whitman tudo isso presenciou e exaltou, claro, sem deixar de martelar as mazelas do seu tempo, como a escravidão e a guerra civil.
Whitman apregoou em sua poética uma vida livre, prática, focada no agora. A poesia, me parece, é um instrumento para a mudança de fato. Foi feita para ser absorvida e expelida em forma de um novo modo de ver, pensar, ouvir, viver. Os sentidos são exaltados ao máximo, a vida, aqui, agora, é o alvo de todo o pensamento. Sentir por si, pensar por si e não por vias secundárias. Logo na segunda página diz:
“Fique este dia e esta noite comigo e você vai possuir a origem de todos os poemas,
Vai possuir o que há de bom da terra e do sol... sobraram milhões de sóis,
Nada de pegar coisas de segunda ou terceira mão... nem de ver através
dos olhos dos mortos... nem de se alimentar dos espectros nos livros,
E nada de olhar através dos meus olhos, nem de pegar coisas de mim,
Você vai escutar todos os lados e filtrá-los a partir do seu eu.”.
É o convite inicial ao mais incrível dos poemas já escritos.
O individualismo liberal americano é onipresente no modo de expressão poética de Whitman, Canção de Mim Mesmo é a maior prova. Sim, há uma exaltação do ser como unicidade, mas não somente. Toda a poesia caminha para um coletivismo universal. O indivíduo é uma parte do universo, um deus em si mesmo, compõe o todo e por isso é igual a todos. Então ao mesmo tempo em que há uma glorificação do ser como indivíduo há o apelo ao igualitarismo. Isso uma influência clara da doutrina Quaker da qual a mãe e a avó de Whitman eram devotas.
Canção de Mim Mesmo, diferente de tudo que já li, é a expressão mais humana de um grito universal. As linhas se metamorfoseiam em tudo que é possível tocar, nenhum homem ou mulher, branco ou negro, está excluído do grito pela agoridade. É incrível como as palavras dançam e as estrofes sem métrica e sem fim levam a um sentimento de infinitude, de eterno retorno, de repetição eterna como números que existem entre um e dois. E mesmo quando acaba não há ponto final, de fato o poema não leva ponto final, e te deixa alí, estupefato, sentindo-se parte de tudo que é, não o que foi ou será, mas é.