Michele Soares 24/04/2022
do amor etc.
Tem um trecho muito bonito de um ensaio do Italo Calvino em que ele começa especulando sobre a quantidade de leitores que uma adaptação cinematográfica d'A Cartuxa de Parma pode vir a angariar (um pouco como, hoje em dia, depois de assistir as duas temporadas de Bridgerton, entramos na Estante Virtual e pesquisamos o preço da coleção de livros da Julia Quinn). Só que essa especulação do autor fracassa de largada, quando ele constata que:
"o dado importante que nenhuma estatística poderá fornecer consiste em quantos jovens serão atingidos por um raio desde as primeiras páginas e se convencerão de repente de que o mais belo romance do mundo só pode ser esse, e reconhecerão o romance que sempre haviam desejado ler e que servirá como termo de comparação para todos os outros que hão de ler depois."
"A Cartuxa de Parma", sem dúvidas, é um romance do coração, do meu coração (e parece que do coração de Calvino também). Uma vez, Stendhal escreveu como as coisas que amamos são as mais difíceis de pronunciar, de falar sobre, e eu sinto isso quando tento escrever sobre a beleza ? e a consequente promessa de alegria ? que um leitor em potencial d'A Cartuxa pode vir a encontrar, tão logo vença a primeira página. É mais cômodo, nesse sentido, me apoiar nos escritos de outro sobre o objeto amado ? assim é que me apoio na resenha de Calvino pra falar dois segundos sobre o romance.
Eu gosto do trecho da resenha porque suas observações se provaram verdadeiras pra mim antes mesmo de conhecer o escrito. Não poderia contar nos dedos quantas foram as vezes que, no meio do caminho duma leitura, escrevi na margem, acima, abaixo, em qualquer canto das palavras: "isso me lembra Fabrice, n'A Cartuxa acontece o mesmo, tal personagem se daria bem com Gina etc." (mesmo ante um casual "etc." podemos lembrar de Stendhal e, por isso, o título da minha resenha ? ele é rei absoluto em, na sua tentativa de dizer apenas o essencial, cortar discursos e cartas inteiras com um abrupto e mortal "etc." ?, estou me vingando). É uma história que fica, sabe? Fica tanto por meio de cenas icônicas ? plasticamente gravadas no nosso cérebro até muito depois de termos terminado o romance ?, quanto por personagens queridos, que parecem caminhar ao nosso lado mesmo depois de termos nos despedido. Essa companhia nem sempre é percebida, não precisamos lembrar dela o tempo todo (como é inevitável fazer), mas ela está lá ? um pouco como o louco Ferrante, encenando o papel de apaixonado e seguindo os passos de Gina, personagem que a todos encanta e que hoje é, inclusive, minha personagem feminina favorita.
Calvino escreve o ensaio em 1982 e, passados exatos 40 anos, é reconfortante encontrar uma leitura sincera e amiga do romance de Stendhal, tecendo exatamente o tipo de comentário crítico-ensaístico que teria valor para S. caso ele conhecesse C. ? S. queria ser lido por leitores que pudesse considerar amigos. Por amigos entende-se, não pessoas que só o elogiassem a torto e a direito, mas pessoas com disponibilidade para ler e avaliar e ajudar a construir uma escrita romanesca digna; isso também significa não qualquer pessoa armada com suas pré-concepções, disposta a já atirar pedras em tudo e em todos os seus personagens, a fazê-los tentar sucumbir de largada em nome da moral.
Stendhal, como uma miríade de compositores do XIX, queria antes quem o escutasse e, não encontrando quem fizesse isso em sua época, S. projetou, como tantos, o seu sucesso para o futuro. Cada pessoa que se dispõe a ler seu romance de 1839 a 2022 prova que ele não estava errado; que, no futuro, ele encontrou amigos, mais do que jamais teve em vida, todos abertos para as histórias que ele tinha para contar. Esse gesto de amizade, essa dispobilidade tão valiosa, pode ou não resultar a descoberta de um romance do coração, como no meu caso, como foi no de Calvino. De qualquer modo, acredito que essa abertura para o romance é essencial, em qualquer momento da vida (não só pro jovem, portanto). O leitor, assim, pode encontrar mais um livro, bom ou mau, ou um romance pra vida inteira ? um amigo, desses que sempre vamos querer revisitar. Não vejo muito a perder.