Erick 09/04/2021Sobre a liberdade, o amor e Deus O ‘Breve Tratado’ representa o pensamento do jovem Espinosa e pode funcionar como uma introdução a sua Ética, tendo em vista que muitos dos temas apresentados nesse livro reaparecerão em sua magnum opus de uma forma mais madura e articulada
Esta obra de Espinosa articula três noções centrais do pensamento espinosano: Felicidade, Liberdade e Amor, coisas indispensáveis para o bem-estar humano. Ocorre que, por ser uma filosofia da imanência, um conceito expressa-se no outro, o que significa que ele pode estar falando de uma coisa tentando iluminar aspectos de outra coisa. É assim por exemplo com a noção de Amor, indissociável da noção de Deus, uma vez que amor é sempre potência que nos afeta de alegria e possui uma relação intrínseca com nossa essência finita.
Vejamos como Espinosa define o amor: “O Amor é a Alegria conjuntamente à ideia de causa externa. Essa definição explica assaz claramente a essência do Amor; a definição dos autores que definem o Amor como a vontade do amante de unir-se à coisa amada não exprime a essência do Amor, mas uma sua propriedade”. Podemos identificar claramente a oposição da concepção espinosana aos que concebem o amor como falta ou desejo – notadamente uma das noções em disputa no Banquete de Platão -, para enfatizar o aspecto positivo do amor como potência de transformar o corpo e a mente de um indivíduo. Não podemos nos esquecer que ele já definira a alegria como ‘uma passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior’; o amor, assim, é essa mesma alegria (passagem de um estado a outro do corpo e da mente) acompanhada de uma causa externa, portanto, o amor é atividade, em oposição a paixão que é mera passividade.
Aqui está talvez o ponto central da concepção de amor para Espinosa: o amor é necessariamente uma atividade no indivíduo pois envolve um conhecimento daquilo que o afeta, a causa externa de seu aumento de potência. Efetivamente, o conhecimento constitui o afeto central do sistema ético espinosano tendo em vista que é ele que opera a passagem do modo finito de sua impotência para uma perfeição maior, a potência de agir e pensar que ele define como alegria – ou seja, é o amor que nos torna mais fortes, potentes. Conhecimento do que nos afeta e o esforço por nos aproximar destas causas constituem a essência do amor para Espinosa. Quando sabemos que uma coisa nos afeta negativamente diminuindo nossa potência de agir e pensar, entristecendo-nos, portanto, devemos nos afastar de tais causas, sejam causas corporais sejam ideias que ocupam e submetem nossa mente. Paixão é sinônimo de servidão, superstição, ignorância, tristeza, diminuição de potência, em uma palavra, passividade. Amor, por sua vez, é a potência ativa de autodeterminação, de conhecimento das causas da alegria. Desse modo o amor é essa própria potência de autodeterminação, associada imediatamente com a liberdade da mente.
Uma das especificidades dessa concepção de amor reside na sua capacidade de voltar-se para fora, quer dizer, conhecendo no mundo as coisas que nos afetam alegremente e ainda associado a alguma dependência de tais objetos, mas essa concepção também nos direciona para dois objetos aos quais podemos nos unir autonomamente, a saber, a ideia de si – eis o que Espinosa chama de contentemente, essa capacidade que os modos finitos têm de alegrar-se com a ideia que eles tem de si mesmo, que também poderíamos denominar de autoestima ou amor de si – e, aqui sim, o objeto que nos conduz ao sumo bem, a beatitude, a liberdade e a felicidade, que é a ideia de Deus.
Espinosa denomina este último de Amor Dei intellectualis, o amor intelectual de Deus. Tal noção é o corolário da intrincada metafísica espinosana, pois ela conecta os conceitos-chave de Deus, Mente Humana, Afetos, Liberdade ou beatitude. Um ser livre é aquele que compreende a sua finitude, quer dizer, o ser humano é um modo finito constituído pelos atributos Pensamento e Extensão, estes infinitos em seu gênero, mas não absolutamente, já que apenas a substância é infinita absolutamente pois tem uma potência infinita de autoprodução – é causa sui. Sem compreender tal finitude, ou seja, sem compreender que seu destino inevitável é a morte, não há liberdade possível. Assim como ao compreender sua constituição modal, ao conhecer o encadeamento causal que o determina, o modo finito tem a possibilidade de participar da atividade divina, conectando o seu intelecto emendado ao intelecto infinito – por isso amor intelectual.
Diz Espinosa: “O amor intelectual de Deus, que se origina do terceiro gênero do conhecimento, é eterno”. O amor enfatizado pelo filósofo é um amor que nasce do terceiro gênero de sua epistemologia, a intuição, que distingue-se da imaginação e da razão, os dois outro gêneros pelos quais tomamos conhecimento das coisas – até porque na sua filosofia nem se pode ter uma imagem de Deus e nem reduzi-lo a um mero conceito racional, mas deve-se sobretudo, intuí-Lo. E aqui opera-se um afastamento de Descartes, demasiadamente atrelado ao racionalismo: para Espinosa, é a intuição o gênero de conhecimento par excellence.
De fato, a liberdade, ou seja, a felicidade ou beatitude, é esse amor ao qual nos unimos não por uma vontade – pois isso seria uma falta ou desejo, portanto passividade -, mas pelo conhecimento desse objeto infinito, que é a própria Natureza. A compreensão que o infinito atual existe necessariamente – Deus sive Natura – e que somos parte de sua atividade infinita e que, por uma potência de nossa mente, podemos nos unir a essa potência aumentando nossa própria potência é a própria liberdade.
Para concluir, gostaríamos de enfatizar o que podemos denominar desse aspecto tríplice do amor. De fato, há como que um escalonamento de ordem afetiva que nos orienta na senda para a beatitude. Se confundirmos e priorizarmos os afetos que nos enfraquecem, entristecem e diminuem nossa potência, não há saída senão a servidão. Portanto, em primeiro lugar, existem os objetos do mundo – dinheiro, bens materiais, aspectos como glória e vontade de ser reconhecido, e há também outras subjetividades. Espinosa não descarta que possamos unirmo-nos a tais elementos: a filosofia espinosana está distante de valorizar a solidão, a pobreza e o egoísmo. Apenas devemos saber o valor que cada coisa apresenta nessa ordem afetiva que por ora apresentamos. O segundo objeto que podemos caracterizar somos nós mesmos, a nossa individualidade, saúde psíquica e desejos. O amor de si é um imperativo na filosofia da imanência. Quem não sabe o valor que tem não poderá reconhecer valor no mundo – máxima ética e também política. E, por último e mais importante, é necessário compreender a ordem toda da natureza e o lugar que nela ocupamos. O conceito de Amor Dei intellectualis que encerra a quinta parte da Ética é a possibilidade que temos, os modos finitos, de conectarmo-nos com o infinito.
De fato, a noção de amor é central no pensamento espinosano, pois ela identifica-se com a noção de liberdade. Isso significa que a coroação de toda a obra são essas duas noções indissociáveis. Desse modo, o filósofo disserta sobre os perigos da submissão humana às suas paixões, inclusive com implicações de ordem política para uma comunidade que vive imersa na ignorância e na superstição. A liberdade intelectual, portanto, é o único modo de superar a servidão, definida por ele como “a impotência humana para moderar e coibir os afetos(…) o homem submetido aos afetos não é senhor de si, mas a senhora dele é a Fortuna”. Ou seja, o remédio para a impotência que é a servidão humana é a própria potência humana, embora finita visto o caráter modal dos humanos, compreendida como a passagem de um modo de uma condição para outra. E essa potência não é outra coisa senão o amor.
O pensamento de Espinosa é muitas vezes associado ao pensamento cartesiano, já que ele iniciou sua vida docente como professor da filosofia de Descartes. O resultado dessa experiência é o único livro publicado em vida com o nome do autor “Princípios de filosofia cartesiana” - o Tratado Teológico-Político também foi publicado em vida, mas sem o nome do autor, por conta das inúmeras perseguições que ele sofria na pretensa sociedade liberal holandesa de meados do século XVII. Nesse livro, o “Princípios”, o objetivo de Espinosa é, por assim dizer, colocar ordem no pensamento de Descartes, o que significa realizar uma exposição em ordem geométrica, colocando as verdades mais claras e evidentes em primeiro lugar na ordem do pensamento. Muito por conta dessa associação ao pensamento cartesiano e esse demasiado apego a ordem geométrica, a filosofia espinosana entrou para a história da filosofia como um pensamento matemático e determinista.
Essa imagem não é totalmente falsa, uma vez que sim, Espinosa concede no seu pensamento uma importância crucial para a ordem das ideias, que deve ser geométrica para que o encadeamento dos argumentos seja o mais claro e coerente possível. Não à toa, sua magnum opus - a Ética – opera numa lógica inextricável dos axiomas às definições, das definições para as proposições e destas para as demonstrações e escólios, o que significa que essa ordem de exposição more geometrico desvela a própria ordem da natureza – natura naturans.
Entretanto tal imagem é apenas parcialmente verdadeira, pois esse aspecto geométrico e pretensamente determinista é apenas parte de sua filosofia. Se reduzirmos a sua filosofia a tais aspectos, perdemos de vista o mais importante: a imanência. A imanência não está necessariamente associada com a geometria e o determinismo; pelo contrário: a geometria é apenas um método rigoroso de ordenar as ideias fazendo com que uma seja deduzida da outra; e o determinismo corresponde aos pressupostos ontológicos da imanência espinosana, pois se aceitarmos o axioma principal de sua metafísica, o de que ‘dada determinada causa, decorre determinado efeito”, dificilmente igualaremos o determinismo espinosano com ideias tais como fatalismo, imobilismo e apatia. A causalidade imanente que encontramos no pensamento espinosano não pode, de modo algum, ser igualado a determinismos de qualquer espécie. Em outras palavras, a imanência é o principal conceito do pensamento espinosano e tudo o mais segue-se dela. Podemos resumir esse conceito com a seguinte proposição “A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas”. Essa simples proposição afasta Espinosa não apenas do pensamento cartesiano, onde a substância pensante (res cogitans) possui uma clara e evidente primazia sobre a substância extensa (res extensa), mas também afasta Espinosa de grande parte dos filósofos que enfatizam essa prioridade da razão, do pensamento ou do espírito sobre a matéria e as coisas mesmas do mundo. Esse aspecto é central em seu pensamento na costura do tecido imanente: não existe dualidade entre corpo e mente, entre entendimento e sensibilidade, espírito e matéria – todas essas dicotomias são aspectos diversos da mesma coisa, a substância – Deus sive Natura. Pensamento e Extensão são concebidos como apenas dois atributos da substância infinita. Dizemos “apenas” pois, justamente, a substância é constituída por infinitos atributos. Os seres humanos, enquanto modos (modificações) destes dois atributos, têm conhecimento apenas deles, já que são constituídos por eles. Possuímos uma limitação que é de nossa natureza, o que não significa que não possamos especular sobre a infinitude atributiva da Natureza Naturante, essa potência identificada com Deus que detém a capacidade de autoprodução (causa sui).
Portanto, esse ‘Breve Tratado’ pode ser considerado como a primeira tentativa de Espinosa de expor sua noção de imanência, mesmo que ainda não numa ordem geométrica, o que só confirma o argumento de que a geometria não é um aspecto estruturante de seu pensamento, mas apenas um aspecto da exposição, da síntese de seu pensamento.