Raphael 16/11/2020Termino a leitura completamente rendido à genialidade desta escritora brasileira...A República dos Sonhos foi o meu primeiro contato com a obra de Nélida Piñon. Termino a leitura completamente rendido à genialidade desta escritora brasileira e tenho o ímpeto de fazer coro ao português Eduardo Lourenço, que apontou-a como uma das maiores escritoras da América Latina e como a maior escritora brasileira viva. Contenho-me por pudor, apenas porque tenho muito que navegar pela sua obra. E já tenho dois livros dela aqui, na fila de espera - "A Casa da Paixão" e o seu romance recém-lançado, "Um Dia Chegarei a Sagres".
No instigante texto de apresentação da obra, o escritor Alberto Mussa não tem dúvidas em apontar "A República dos Sonhos" como um dos textos seminais da cultura ocidental, apresentando-o como um "romance total", como um "romance perfeito".
O romance narra a saga de Madruga, um imigrante que, com apenas 13 anos de idade, foge da Galícia no início do século XX, decidido a fazer fortuna e deitar raízes no Brasil. Na travessia atlântica, conhece Venâncio, que se tornará seu amigo e companheiro de aventura ao longo de toda a vida. Com o passar dos anos, enquanto Madruga se casa e constitui família, seus filhos e netos vão consolidando o estabelecimento de suas raízes em terras brasileiras, e o leitor, a partir do espaço orbital dessa família, se vê conduzido ao longo da história do Brasil do século XX. A modernização do Rio de Janeiro, a condição do imigrante europeu, a questão racial, as estruturas da República Velha, a Revolução de 1930, a Era Vargas, a ditadura estadonovista, a Segunda Guerra Mundial e a queda de Getúlio; as perspectivas desenvolvimentistas dos anos Juscelino, a tensão dos anos Jango, a ditadura militar, as perseguições políticas, a tortura, os exilados, etcéteras a perder de vista. Para completar, a raiz que liga nossos personagens à Espanha também nos situa em face de um dramático processo histórico transcorrido no Velho Mundo: a Guerra Civil Espanhola e o advento do franquismo.
A par da tessitura dos contextos, os temas trabalhados em A República dos Sonhos são muitos: a dimensão da ancestralidade, o espaço das lendas e das narrativas míticas e seu sentido aglutinador, no que respeita à construção de uma identidade nacional; o estatuto social da mulher - da mulher negra, inclusive; a sexualidade e, em particular, a sexualidade feminina em face de um contexto que a oprime. Os temas são tantos, o romance tem tantas camadas, que me desobrigo da pretensão de ser exaustivo para não correr o risco de exaurir os eventuais leitores dessa resenha.
Em verdade, trata-se de um romance multidimensional, cheio de camadas. E a percepção dessa multidimensionalidade é reforçada pelas escolhas narrativas da autora que torce completamente a cronologia, transitando a todo momento entre o passado e o futuro, num fluxo quase desconcertante, embora tremendamente arrebatador, numa viagem guiada por três vozes narrativas que se alternam - duas delas em primeira pessoa (a narrativa de Madruga e a de sua neta, Breta) e uma, impessoal, em terceira pessoa.
Aliás, o desarranjo da cronologia do texto me causou um efeito curioso. A maneira como o livro inicia, conjugada com algumas pistas colhidas no texto de abertura assinado pelo escritor Alberto Mussa, me sugeriu algumas ideias de como o romance poderia terminar. Por essa razão, não tive tanto aquela ansiedade para chegar ao final. Eu queria saber o que aconteceu no meio do caminho. Por isso, fica aqui uma sugestão: "A República dos Sonhos" é uma leitura para ser apreciada sem pressa.
Quanto ao mais, destaco a estética do texto nelidiano, a grandiloquência dos diálogos, a riqueza da construção íntima dos personagens, às voltas com suas contradições e me fica a impressão de que "A República dos Sonhos" é dessas obras que geram, como efeito reflexo, um certo encantamento pela vida, pela efemeridade do humano - inclusive no que respeita à sua dimensão trágica. Quase dá vontade de passar a interpelar as pessoas na rua - sobretudo os idosos - a fim de ouvir-lhes as histórias.
Devo dizer, no entanto, que, terminada a leitura desse romance monumental, defronta-me uma perplexidade: como é que uma obra de arte dessa magnitude, dessa densidade, dessa qualidade segue sendo tão pouco lida - e até mesmo pouco conhecida, fora de determinados nichos? Como é que uma escritora da estatura de Nélida Piñon segue sendo tão pouco valorizada por nós, brasileiros? Se utilizamos o próprio Skoob como termômetro, veremos que apenas 151 pessoas leram esse livro até o momento. É muito pouco, quando comparamos com outros grandes textos da literatura brasileira. Assisti a um bate-papo recente de Nélida com o Professor João Cezar de Castro Rocha, em que ela disse a ele que sua obra nunca foi bem compreendida no Brasil e que ela sempre foi mais reconhecida no exterior do que por aqui. Não posso evitar o sentimento de injustiça que essa situação encerra e gostaria muito que Nélida fosse cada vez mais descoberta por leitores brasileiros.
Se essa modesta resenha servir para despertar o interesse de um leitor que seja, já me darei por recompensado. Leiamos Nélida Piñon!
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