Jhons Cassimiro 02/04/2017
Somos todos errados
Difícil compreender o que nos torna o que somos.
Os caminhos pelos quais percorremos ao longo da vida, as decisões que iremos tomar dia após dia, as derrotas que vamos acumular e que servirão de adubo para fazer florescer nossas decepções mais íntimas, são escritas por nós mesmos e por aqueles que nos cercam, em especial nossos pais.
Longe de ser um conto de fadas, a vida real nos revela, infelizmente somente após muitas décadas, que as coisas não são tão simples. Nem sempre o pai amará o filho, as vezes ele apenas cumpre sua obrigação de pai. Quase sempre a mãe escolhe um predileto e faz dele sua razão de viver.
Não se sabe ao certo o que faz um filho ser preferido de um ou de outro. Talvez a razão esteja na maneira de enxergar o mundo e suas leis de certo e errado. A mãe concorda com as atitudes de um, o pai com as do outro. Nesse momento, o conflito surge e ilude aqueles que pensam que existe um certo e um errado.
Somos todos errados.
No livro Dois irmãos de Milton Hatoum, Yaqub e Omar são os gêmeos do casal Zana e Halim. Extremamente diferentes, porém incrivelmente reais, mostram suas distintas personalidades ao longo do livro, fazendo o leitor se enxergar tanto em um, quanto no outro. Em um primeiro momento escolhemos torcer por um dos dois, mas logo percebemos que as coisas não são tão simplórias. Cada um possui sua razão de ser como é, de agir estranhamente de acordo com a maneira que a vida apresenta sua trama.
Não somos (tampouco Yaqub e Omar) personagens cumprindo um papel desempenhado pela genética, mas também não somos um livro em branco onde o ambiente ditará o que será escrito. Mas essa última alternativa possui um grande peso.
O que levou Halim a preferir Yaqub, aparentemente, foi o fato deste ter decidido partir de casa em busca de um futuro próspero, mas isto estava longe de ser uma verdade. O egoísmo de Halim é que falava mais alto ao perceber que com os filhos longe de casa ele poderia voltar a ter a felicidade sexual e a liberdade com a mulher, vivenciadas na época em que não possuiam filhos. Zana preferia Omar porque ele foi o que nasceu por último, mais frágil quando bebê. Tal fragilidade se restringiu a este período, pois o mimo exagerado de Zana por Omar o tornou alguém incapaz de ir adiante nas coisas da vida. Um eterno moleque incapaz de levar a sério qualquer coisa.
Por diversos momentos vemos Omar como o errado da história, era o mais impulsivo, irresponsável, desleixado para com os estudos e sobretudo violento contra seu irmão Yaqub. Este se tornou calado, ensimesmado após as erradas decisões que seus pais tomaram ao distanciá-lo da família de maneira forçada, logo após ele ter sido vítima da violência de Omar. A vítima acabou pagando por algo que não fez. E através dessa decisão errada que os pais impuseram, surge o Yaqub fechado, que encontra na devoção aos estudos o caminho para provar ao mundo, ou talvez aos pais e ao irmão, que ele poderia ser muito mais que um simples menino que fora obrigado a se tornar um camponês em um país distante.
Mas Yaqub não era apenas vítima. Se transformou em um homem de sucesso e após muito tempo conseguiu se vingar de Omar. Não seria capaz de esquecer tudo que passou, estava escrito em sua face através de uma cicatriz, a violência e o desprezo que Omar sentia por ele.
A proteção exagerada de Omar, promovida por Zana, determinou sua personalidade e o momento em que ela exige que ele seja diferente mostra o quão errados os pais são ao esperar algo diferente daquilo que seus filhos foram acostumados a fazer durante uma vida inteira.
Um bom exemplo disso é um pai ou uma mãe que criam seus filhos com muita proteção, longe de interações mais perigosas com o meio. Após algum tempo esses mesmos pais irão reclamar que seus filhos são pouco sociáveis, tímidos, bichos do mato. Entretanto não percebem a armadilha que eles mesmos criaram.
A situação gera um conflito estabelecendo o desencontro entre os membros da família. Surgem os desentendimentos, as brigas, o ódio, a busca pelo perdão e reconciliação que podem vir ou não.
Nem Omar, nem Yaqub, nem Zana, nem Halim, sequer um personagem do livro possuía razão. Ninguém estava completamente certo, da mesma forma que na vida real. É a crueza contida nesta história que torna o livro do manauara Milton Hatoun, extremamente doloroso de se ler.
Dói perceber o tempo passando, as pessoas morrendo, a cidade crescendo, o passado desaparecendo, o ódio se perpetuando. Dói saber que a vida de cada um de nós é bastante parecida com as histórias do livro, porque temos irmãos, pais e mães. Nos tornamos empáticos com Omar e Yaqub (se somos filhos), empáticos com Zana (se somos mães), empáticos com Halim (se somos pais). Empáticos com todos, porque estamos vivos e cheios de histórias de dor.
Dois irmãos é um retrato de nossas famílias, de nossa sociedade, de nosso país em uma época específica, porém possível em qualquer época. Nos vemos em Yaqub, o filho estudioso, que como o país, sempre promete ser próspero. Nos vemos na malemolência de Omar em seus dias preguiçosos na rede sempre gozando os prazeres da vida fácil embalada por nossas mães carinhosas. Vemos nossa sociedade retratada nas relações de poder de ricos e pobres, nos patrões e empregados, nas serviçais estupradas pelos filhos dos patrões, nos filhos bastardos.
Vemos como somos grandes criadores de paixões difíceis e perigosas, incapazes de pedir e dar perdões.
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