Amanda 24/03/2018Como estragar os filhosMuito se fala sobre criação de filhos, falta de limites, obrigações e responsabilidades, sobre a proteção exagerada e o excesso de amor, assim como a falta dele. Sobre tornar o filho o centro da família. Ainda assim muitos pais não enxergam que a criança mimada pode se tornar o adulto transgressor, violento ou eternamente dependente dos pais. Em Dois Irmãos, Milton Hatoum nos apresenta um romance de formação riquíssimo em detalhes e causos do cotidiano de uma família descendente de libaneses em Manaus e as consequências de uma criação irresponsável.
Yaqub e Omar são irmãos gêmeos idênticos, exceto pela personalidade e favores familiares. Yaqub foi enviado para o Líbano quando criança após desentendimentos com o irmão e passou cinco anos sem contato com a família. Enquanto isso, Omar brilhou como a estrela da casa. A criança levada cresceu e se tornou um jovem fanfarrão, alcoólatra, brigão e mulherengo, mimado até os ossos pela mãe Zana.
Quando Yaqub volta do Líbano mostra-se ainda mais retraído, envergonhado, sem muito trato social e, como sempre, ofuscado pelo gêmeo "mais novo", o Caçula Omar. A casa vive em prol de Omar e Zana, que domina o marido, filhos, vizinhos e a cunhantã Domingas. Zana é teimosa, tem uma personalidade intratável, autoritária, cega pelos caprichos do filho e insensível às necessidades de Yaqub, do marido Halim e da outra filha, Rânia.
Rânia, por sinal, é completamente esmagada nesse fogo cruzado entre irmãos. Uma moça sem voz, sem vontades, sem atenções. Halim, por outro lado, apaixonado por Zana até os cabelos, tudo aguenta, tudo suporta por ela. Não interfere na criação dos filhos, prefere beber e jogar seu gamão, cuidar da loja e contar histórias.
Por falar em histórias, Dois Irmãos é narrado em primeira pessoa por um narrador a princípio desconhecido, em forma de relato, e logo percebe-se que, apesar de não sabermos quem está falando conosco, trata-se de alguém próximo à família. Ele reúne os histórias contadas por Halim, por Domingas e Zana, suas próprias experiências e as impressões que os gêmeos e essa família tempestuosa deixaram nele.
Essa é a sacada de mestre de Milton Hatoum: nos deixar curiosos até o final pra saber quem é essa pessoa misteriosa que nos conta de forma tão direta e honesta sobre os acontecimentos ao longo dos anos. O interessante é que o romance acompanha não apenas o crescimento dos gêmeos, mas também do próprio narrador, que muda sutilmente sua visão sobre algumas coisas ao longo da trama, de um olhar mais inocente e doce de criança para descrições mais maldosas e cortantes de adulto que tanto viu essa família aprontar.
Domingas, a índia, merece um enorme destaque aqui, não só pela sua doçura, mas principalmente pela crítica ao trabalho escravo. Suas passagens nos fazem atentar e refletir para esse problema que sempre fez parte da sociedade brasileira. Escravidão não afeta só negros, não representa apenas chibatadas e senzala. A escravidão também está marcada a ferro na alma das várias mocinhas e mocinhos que são criados como parte da família, mas que nunca realmente o foram, treinados a obedecer e limpar, lavar, cozinhar, passar, costurar... a servir em troca de um teto e refeições. Não ter liberdade de ir e vir, não receber o próprio dinheiro, ser explorado também é trabalho escravo.
Os passeios por Manaus que Hatoum proporciona também são um ponto alto do livro. A descrição dos pratos de peixes assados, manjares e refeições manauaras são de dar água na boca e todas as andanças pela cidade, pelos rios em canoas e barcos, bares e casinhas de palafita nos fazem respirar Manaus sem nem precisarmos pagar a passagem de ida.
Mais do que um simples romance cotidiano, Dois Irmãos é sobre o quanto os pais podem e influenciam na moldagem de caráter e personalidade dos filhos, quanto dos sucessos e fracassos são responsabilidade dos genitores. Amor demais estraga, assim como uma planta encharcada de água apodrece. Amor de menos também, como fel na língua, amarga a alma.