Manuella_3 01/11/2013
O ódio que o tempo não dissolve
DOIS IRMÃOS – Milton Hatoum – Companhia das Letras, 2007.
Vencedor do prêmio Jabuti, o livro conta a história de dois irmãos gêmeos que se reencontram após cinco anos. Há uma ruptura entre eles e um mal estar familiar prestes a ser revelado.
A narrativa em primeira pessoa deixa o leitor curioso para saber quem está contando a história da família libanesa que vive em Manaus. Com avanços e recuos do tempo, sem seguir uma ordem cronológica dos fatos, o narrador vai lembrando de situações conflituosas vividas na família, que tem como ponto dramático o desentendimento entre os gêmeos Omar e Yaqub. Há também a relação incestuosa da irmã Rânia com os irmãos, a preferência da mãe por Omar e o ciúme que o pai, Halim, tem da esposa Zana. Nesse emaranhado de emoções estão inseridos a empregada índia Domingas e seu filho, cujo nome só saberemos no final. Ele narra a história.
À medida que relembra tudo que viveu junto à família, o narrador parece buscar respostas para seu drama pessoal: saber quem é seu pai. Domingas nunca lhe contou e, ao longo do livro, vamos conhecendo cada personagem e a influência que exercem sobre o narrador. Com Halim, o patriarca, tem uma relação de proximidade e afeto, sendo seu confidente. E nutre uma paixão por Rânia, a irmã que nunca casou e tomou a frente do comércio da família. Halim conta sobre seu grande amor pela mãe dos gêmeos, Zana, e de como os filhos lhes roubaram os momentos íntimos e intensos.
Se por um lado o ressentido gêmeo Yaqub avança nos estudos e cresce profissionalmente, fazendo carreira como engenheiro e casando com o amor de infância de ambos, Omar é o gêmeo irresponsável e mulherengo, vive de farras e é protegido pelo cuidado obsessivo de Zana.
Ao reunir as lembranças do que observou na convivência com a família, o narrador tenta costurar a sua vida com os pedacinhos que lhe sobraram. Sua mãe trabalhou até o fim na grande casa dos imigrantes libaneses e a ele restou um quarto nos fundos.
Gostei muito do narrador, sua mãe e Halim, personagens carismáticos e suaves. Zana é a matriarca que rege a família com sua força e vai decidindo a vida dos filhos. Senti mesmo raiva de Omar e sua vida desregrada, sua agressividade e despeito.
O autor traz uma importante reflexão sobre o ódio que permanece, que a distância e o tempo não podem dissolver. Mágoas que vão se sobrepondo na história dessa família que vê o infortúnio chegar e levar Halim, Zana e Domingas. E com as sobras os irmãos carregam seus erros e dores, desconstruindo sonhos e inquietando o leitor, que os vê despidos de suas defesas. Humanos demais.
Com belos trechos da obra, termino o livro com lágrimas nos olhos. Linda e comovente leitura, profunda e sensível, tão real e próxima que chega a doer.
'Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos.' (p. 264).
'Naquela época tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras.' (p. 244)