Andreia Santana 17/10/2011
Mistérios insondáveis de Fanny
Fanny é uma protagonista irritante, sem dúvida. Não é audaciosa, ao contrário, é covarde, submissa, ingênua. Ao menos, essa é a primeira impressão ao ler Mansfield Park: que Fanny não passa da avó da Polianna.
No entanto, na medida em que o livro avança, a jogada de gênio de Jane Austen fica mais clara. Fanny é uma boa moça, sem dúvida, para os padrões do século XVIII, mas tem seus momentos de maus pensamentos. É implacável no julgamento dos outros, não faz concessões, tem seus desafetos, permite-se sentir inveja dos que estão em melhor situação que a sua. Morando de favor na casa dos tios ricos, para onde foi levada aos 12 anos, se humilha porque acredita que deve manter-se em seu lugar, mas guarda ressentimentos (é humana afinal!). Equilibra-se a um passo entre a santidade e a amargura e é isto que faz dela uma personagem tão estimulante.
Através da doce Fanny, Jane Austen consegue reunir diversos conflitos da alma humana numa única pessoa. Apesar da atividade freqüente, Fanny é indolente, pois tem preguiça (mais do que medo) de encarar sua vida e dissabores de frente, ela prefere arrumar desculpas convenientes para as desditas. Prefere acomodar-se na posição do patinho feio da família. Age na sombra, influencia a todos sem que eles percebam que estão sendo influenciados.
Ao longo das mais de 300 páginas, nós leitores somos levados a amar Fanny profundamente e a odiá-la com todas as forças por ela ser tão patética. Não conseguimos compreender porque ela agüenta as maldades da tia Norris, uma viúva amarga e cruel; ou porque se submete a ser a escrava de luxo de sua tia Bertram, uma matrona tolinha, leviana e completamente subjugada pelo marido.
Lady Bertram acomoda-se na posição de grande dama e não emite uma única opinião sem que consulte Sir Thomas, sem que ele lhe diga o que é e o que não é adequado. Acostumada que decidam tudo por ela, passa os dias bordando sentada no sofá, com um cachorrinho no colo. Com essa personagem, Austen descreve exatamente o que era uma mulher bibelô naqueles tempos em que a beleza física era o maior atributo de mulheres que serviam apenas de adorno e objeto sexual.
Todos os personagens de Mansfield Park trazem em si as controvérsias de ser humano. O bom vivant Henry mostra-se capaz de atos de grande cavalheirismo, mas como o escorpião, não consegue fugir da própria natureza; enquanto o cavalheiro, quase padre (anglicano), Edmund, é capaz de entregar-se à maledicência e ao julgamento pelas aparências. Não são raras as passagens em que ele e a prima Fanny entregam-se com prazer à arte de falar mal das atitudes alheias, condenando todos com base no ideal de comportamento que tem por padrão eles mesmos! Em alguns momentos, Fanny parece hipócrita.
Já a leviana Mary divide-se entre o desejo de dar o golpe do baú e o de ser livre, de ter o direito de pensar por conta própria. Liberdade e mulher eram palavras mais do que opostas no século XVIII e através de Mary Crawford, a autora mostra o quanto era difícil fugir do script traçado pela cultura e educação recebidas. Mary até tenta, mas não passa de outra caçadora de maridos, maldosa e maliciosa.
A autora britânica critica o jogo de aparências em todas as suas obras, mas nesta, mostra uma sociedade inteiramente construída sobre a imagem projetada e as expectativas sociais. Não é à toa que projetos vivem sendo frustrados, porque ninguém age em Mansfield Park sem lançar mão da dissimulação. Fanny mais que todos, faz da dissimulação uma arma poderosa de sobrevivência.
Mansfield Park foi publicado em 1814, quando Jane Austen estava com 39 anos. É um dos livros mais intrigantes da autora, embora eu considere inferior a Razão e Sensibilidade, por exemplo, e anos luz da obra prima dela, Orgulho e Preconceito (estou apaixonada por este livro e por Elisabeth Bennet, a melhor heroína da escritora, sem sombra de dúvida!).
O que desafia em Mansfield é justamente o caráter de Fanny, a cada página ela se revela de uma forma. Seu retorno para casa, após ser criada na mansão dos tios, e o desprezo que parece nutrir pela própria família, considerada pobre e mal-educada, dizem muito mais sobre seu caráter do que qualquer outra passagem do livro. Embora tenha boas intenções e uma alma mais propensa à sensatez, Fanny também não consegue fugir da educação recebida e das expectativas sociais.
Esta é a obra de Jane Austen considerada a mais autobiográfica. Todo o universo da autora descreve o cotidiano da sua infância e juventude (ela morreu aos 42 anos, relativamente jovem), da Inglaterra rural e o mundo das caçadoras de marido, dos dotes, dos contratos de casamento, das convenções sociais e da dissimulação. Mas Mansfield Park pode ser considerado o tratado de Austen sobre o ato de dissimular e talvez seja o livro onde ela menos usa o humor e mais se entrega a amarga decepção de constatar que o seu mundo era uma prisão de grades douradas.