spoiler visualizarGlailson 18/09/2014
Uma leitura marxista de "Imposturas intelectuais" de Alan Sokal e Jean Bricmont
Alan Sokal é um físico norte-americano que conquistou destaque nos debates filosóficos contemporâneos, após pregar uma "peça" na revista americana Social Test (publicação de estudos culturais até então conhecida por seu caráter pós-moderno), escrevendo um artigo completamente vazio de significado ligando o relativismo cultural à mecânica quântica. Artigo este que, apesar de intencionalmente absurdo, acabou publicado.
Juntamente com o também físico belga Jean Bricmont, buscando esclarecer as razões que o levaram a lançar mão do inusitado estratagema, Sokal escreveu o livro "Imposturas Intelectuais", uma critica contundente e sagaz às correntes filosóficas que na atualidade hegemonizam o ambiente acadêmico, sobretudo no campo das humanidades e ciências sociais, correntes como o Pós-estruturalismo, o Antifundacinismo e o Relativismo, que para simplificar ele designa coletivamente como Pós-modernismo.
Em sua obra os próprios autores esclarecem:
"Vastos setores das ciências sociais e humanidades parecem ter adotado uma filosofia que chamaremos, à falta de melhor termo, de 'pós-modernismo': uma corrente intelectual caracterizada pela rejeição mais ou menos explícita da tradição racionalista do Iluminismo, por discursos teóricos desconectados de qualquer teste empírico, e por um relativismo cognitivo e cultural que encara a ciência como nada mais que uma 'narração', um 'mito' ou uma construção social entre muitas outras.
(...)pós-modernismo é uma malha de ideias tão intrincada - e de vínculos lógicos tão frágeis - que não é fácil caracterizá-la senão como um vago Zeitgeist. No entanto, as raízes desse Zeitgeist não são de difícil identificação, e remontam ao inicio dos anos 60: desafios às filosofias empiristas da ciência (Kuhn), críticas às filosofias humanistas da história (Foucault), desilusão com os grandes projetos de transformação política".
Sobre o objeto de sua critica eles salientam ainda:
"Nosso foco está concentrado sobre certos aspectos intelectuais do pós-modernismo que tiveram impacto nas humanidades e nas ciências sociais: um fascínio pelos discursos obscuros; um relativismo epistêmico ligado a um ceticismo generalizado em face da ciência moderna; um excessivo interesse em crenças subjetivas independentemente de sua verdade ou falsidade; e uma ênfase em discursos e linguagem em oposição aos fatos aos quais esses discursos se referem (ou, pior, a rejeição da própria ideia de que fatos existem ou de que podemos fazer referência a eles)".
Explorando os fundamentos epistemológicos da filosofia pós-moderna, Sokal e Bricmont lançam luz sobre a origem acadêmica do pensamento pós-moderno, ao relacioná-la com uma critica radical à abordagem de Popper e a aparente confusão entre a não-validade de uma determinada abordagem para explicar o processo pelo qual opera a ciência com a não-validade da ciência em si. Dizem eles:
"Grande Parte do ceticismo contemporâneo pretende encontrar apoio nos textos de filosofos como Quine, Kuhn ou Feyerabend, que puseram em dúvida a epistemologia da primeira metade do século XX. Esta epistemologia está, na verdade, em crise. Para compreender a natureza e a origem da crise e o impacto que ela pode produzir sobre a filosofia da ciência, remontemos a Popper. Evidentemente, Popper não é um relativista, muito pelo contrário. Ele constitui, no entanto, um bom ponto de partida, primeiramente porque grande parte dos desenvolvimentos modernos da epistemologia (Kuhn, Feyerabend) surgiram em reação a ele, e em segundo lugar porque, embora discordemos diametralmente de algumas conclusões a que chega os críticos de Popper, como Feyerabend, é verdade que uma parte significativa de nossos problemas remontam a certos erros e exageros contidos em The Logic of Scientific Discovery, de Popper.
(...)
Sem dúvida, a epistemologia de Poper contém alguns insights válidos: a ênfase na falsificabilidade e na falsificação é salutar, contanto que não seja levada a extremos (por exemplo, a rejeição global da indução).
(...)
Alguns pensadores, principalmente Feyerabend, rejeitaram a epistemologia de Popper por muitas razões recentemente discutidas, e caíram então numa atitude extremamente anticientífica. Mas os argumentos racionais em favor da teoria da relatividade ou da teoria da evolução encontram-se nos trabalhos de Einstein, Darwin e seus sucessores, não em Popper. Em consequência, mesmo que a epistemologia de Popper fosse inteiramente falsa (certamente não é o caso), isto não implicaria nada que dissesse respeito à validade das teorias científicas".
Embora não poupem criticas ao marxismo, que os autores citam como exemplo nas ciências sociais da "ilusão de que métodos simplistas, mas supostamente 'objetivos' ou 'científicos' nos permitirão resolver problemas muito complexos", Sokal e Bricmont, por sua honestidade intelectual e método materialista de análise, acabam se aproximando bastante das conclusões de Lênin em sua obra Materialismo e Empiriocriticismo. Com a palavra a dupla de físicos contemporâneos:
"Ora, como explicamos antes, não vemos nenhuma diferença fundamental entre a epistemologia da ciência e a atitude racional na vida comum: a primeira não é mais do que a extensão e o refinamento da última. Consequentemente, podemos ter sérias dúvidas sobre qualquer filosofia da ciência - ou metodologia, para sociólogos - quando nos apercebemos de que é clamorosamente errônea ao ser aplicada à epistemologia da vida cotidiana."
Esta nos parece não mais do que uma versão rebuscada da velha máxima leninista anti-obscurantista de que "a prática é o critério da verdade".
E para aqueles que, como os filósofos pós-modernos, estão tentados neste ponto a invocar os "paradoxos" e aparentemente "absurdos" da ciência contemporânea como as peculiares previsões da Teoria da Relatividade de Einstein para buscar invalidar a proposição de Lênin, os físicos Sokal e Bricmont tratam de esclarecer:
"Não há nenhuma contradição entre a Relatividade e a nossa experiência cotidiana; a contradição é antes entre a relatividade e uma extrapolação natural, mas errônea (sabemo-lo agora) de nossa experiência do dia-a-dia.
(...)
As afirmações da Relatividade são efetivamente chocantes à primeira vista. Porém é preciso ressaltar que elas são 'paradoxais' no sentido em que contradizem nossos preconceitos, mas de modo algum no sentido de que contenham uma contradição lógica qualquer. E essas previsões 'paradoxais' foram comprovadas experimentalmente; nossos preconceitos são simplesmente falsos (se bem que sejam boas aproximações quando as velocidades são pequenas em relação a velocidade da luz)."
Admiravelmente consequentes em sua abordagem critica, rigorosa e materialista da realidade, a aguçada análise dos autores tão pouco se esquiva de importantes conclusões políticas:
"(...)é incontestável que a ciência, como instituição social, está ligada ao poder político, econômico e militar, e que o papel social desempenhado por cientistas é, com frequência, pernicioso. É igualmente verdade que a tecnologia tem efeitos mistos - às vezes desastrosos - e que ela raramente produz as soluções milagrosas que seus mais fervorosos defensores habitualmente prometem. (...) a ciência, considerada como um corpo complexo de conhecimentos, é sempre falível, e os erros dos cientistas são, por vezes, fruto de preconceitos sociais, políticos, filosóficos e religiosos. Somos a favor de uma critica sensata da ciência de todos estes sentidos.
(...)
Aqueles que exercem o poder político ou econômico irão preferir naturalmente que a ciência e a tecnologia sejam atacadas como tais, porque esses ataques ajudam a encobrir as relações de força em que o seu próprio poder está assentado. Além do mais, ao atacar a racionalidade, a esquerda pós-moderna priva-se de um poderoso instrumento de critica da ordem social existente".
Reconhecem também que:
"Os problemas enfrentados hoje em dia pelas ciências naturais dizem respeito fundamentalmente ao financiamento da pesquisa e, em particular, à ameaça à objetividade científica quando fundos públicos são crescentemente substituídos por patrocínios privados".
Sobre as consequências políticos do pós-modernismo concluem:
"As origens do pós-modernismo não são puramente intelectuais. Tanto o relativismo filosófico quanto os trabalhos dos autores aqui analisados exercem uma atração específica no seio de algumas tendências políticas que podem ser caracterizadas (ou se caracterizam) como de esquerda ou progressistas. Além do mais, a 'guerra das ciências' é vista, com frequência, como um conflito político entre 'progressistas' e 'conservadores'. Claro, existe também uma longa tradição anti-racionalista em alguns movimentos de direita, mas o novo e curioso quanto ao pós-modernismo é que constitui uma forma anti-racionalista de pensamento que seduziu parte da esquerda.
(...)
A existência de tal vínculo entre o pós-modernismo e a esquerda constitui um grave paradoxo. Na maior parte dos últimos dois séculos, a esquerda se identificou com a ciência e contra o obscurantismo, acreditando que o pensamento racional e a analise destemida da realidade objetiva (tanto natural quanto social) eram instrumentos incisivos no combate às mistificações promovidas pelos poderosos.
(...)
No momento em que as superstições, o obscurantismo e o fanatismo religioso e nacionalista se espalham pelos quatro cantos do mundo - incluindo o 'desenvolvido' Ocidente -, é irresponsável, para dizer o mínimo, tratar com tal indiferença aquela que tem sido a principal arma contra esses loucuras, isto é, a visão racional do mundo.
(...)
Finalmente, para todos aqueles entre nós que se identificam com a esquerda política, o pós-modernismo tem consequências negativas específicas. Antes de mais nada, o excessivo enfoque na linguagem e o elitismo ligado à utilização de um jargão pretensioso contribuem para prender os intelectuais nos debates estéreis e isolá-los dos movimentos sociais que ocorrem fora de sua torre de marfim".
No que nos parece uma clara, embora inconsciente, alusão ao papel do stalinismo como catalizador do crescimento do pós-modernismo no campo de esquerda Sokal e Brinmont afirmam:
"Um fator que dirigiu os novos movimentos sociais (o movimento de libertação dos negros, o movimento feminista, o movimento dos direitos dos homossexuais, entre outros) em direção ao pós-modernismo foi, indubitavelmente, a insatisfação com as velhas ortodoxias de esquerda".
Dizemos "clara, embora inconsciente" por nos parecer óbvio que os autores, como infelizmente tornou-se comum, não só entre a intelectualidade como nas massas em geral, confundem o marxismo com sua grotesca caricatura que é o stalinismo/maoísmo/castrismo.
Nos chama atenção, ainda, que a analise feita nesta importante critica ao pensamento pós-moderno, editada originalmente em 1999 por autores declaradamente avessos ao 'marxismo', caminhe no sentido de convergir para a caracterização, atualmente vigente em uma parte importante do movimento trotskysta internacional, do que se convencionou chamar de
"Vendaval Oportunista", um verdadeiro furacão ideológico que varreu quase todas as correntes de esquerda do mundo para o campo do reformismo, da conciliação de classes, desde a queda dos regimes estalinistas no leste.
Pois segundo os autores:
"Outra fonte das ideias pós-modernas é a situação desesperadora e a desorientação geral da esquerda, uma situação que parece sem paralelo na história. Os regimes comunistas entraram em colapso; os partidos social-democratas, onde permanecem no poder aplicam políticas neoliberais ainda que diluídas; e os movimentos do Terceiro Mundo que conduziram seus países à independência abandonaram, na maioria dos casos, qualquer tentativa de desenvolvimento independente".
Concluindo sua brilhante, porém limitada, critica Sokal e Bricmont indagam:
"O que virá após o pós modernismo? (...) Uma possibilidade é a reação que conduza a alguma forma de dogmatismo, misticismo ou fundamentalismo religioso. (...) Uma segunda possibilidade é que os intelectuais se tornem relutantes em tentar qualquer critica rigorosamente abalizada à ordem social vigente, se transformando em seus servis defensores - como aconteceu com alguns intelectuais franceses de esquerda depois de 1968 - ou evitando completamente compromissos políticos. Nossas esperanças, contudo, vão em outra direção: o surgimento de uma cultura intelectual que seja racionalista mas não dogmática, científica mas não cientificista, receptiva a ideias e argumentos mas não frívola, politicamente progressista mas não sectária. Porém, isso, claro, é apenas uma esperança, talvez apenas um sonho".
Embora não possamos deixar de saudar a incisiva critica dos autores a uma forma reciclada da velha filosofia idealista reacionária que tenta se travestir de ideologia de esquerda para buscar se postular como alternativa ao materialismo dialético, temos o dever, nós mesmos, adeptos do materialismo dialético, de criticar esta relevante contribuição de Sokal e Bricmont.
Assim, somos capazes de ir além da esperança vacilante dos autores desta oportuna critica dos abusos da Ciência pelos filósofos pós-modernos, pois cientes da construção histórica dialética que são as sociedades humanas e do potencial transformador da classe trabalhadora, devemos assumir a tarefa de erguer nossas barricadas nas ruas, nas fábricas e onde mais for preciso, para, a partir da mobilização e organização de nossa classe, construir no cotidiano das lutas econômicas, políticas e teóricas, o mundo que sonhamos.