Claire Scorzi 06/04/2009
Fantasias Feitas de Sombras
H. P. Lovecraft (1890 - 1937) é, como outros escritores do gênero fantástico, vítima de seu apelo visual. Algumas de suas histórias adaptadas para o cinema concentram-se nos aspectos de "horror" em sua obra, por vezes deformando-a. Tendo visto propagandas nauseantes dos ditos filmes, demorei a livrar-me da má impressão; fui me arriscar a ler um conto de Lovecraft pela primeira vez numa coletânea com vários escritores do fantástico. Devagar, o autor foi-se despindo da aura de "cine-enjôo" que adquirira para mim.
Em A Maldição de Sarnath , volume de contos, encontramos histórias em que o tom predominante é o do fantástico meio maravilhoso, próximo do conto de fadas, ainda que "conto de fadas" sombrio: Os outros deuses e especialmente A árvore. Já em outros sente-se a influência de Edgar Allan Poe - A tumba, onde temos inclusive Lovecraft assumindo a narrativa na primeira pessoa, recurso usual do autor de Os crimes da rua Morgue. Há ainda aqueles contos em que as possibilidades ficam esboçadas, sugeridas, sem alcançar algo concreto: a trama não avança para o horror ou a tragédia, apenas deixa no ar que estas poderiam ocorrer, ou já ocorreram antes que a história começasse: Polaris , Além da barreira do sono, Memória. Mais um conto no estilo de Poe é A maldição de Sarnath: sua linguagem requintada, repleta de descrições de um cenário belíssimo antes que aconteça a catástrofe, lembrou-me A máscara da morte rubra de Poe.
É possível que o preâmbulo "belo" no conto-título seja uma variante de uma característica comum nessas narrativas: a da natureza vista como ambígua, como suspeita, na melhor da hipóteses; na pior, como inimiga do homem; como se os astros celestes e as criaturas - minerais, vegetais - fossem precursoras ou aliadas do Mal.
"... e em torno de seus carvalhos terrivelmente nodosos foram tecidas minhas primeiras fantasias da meninice (...)" (A tumba, pág. 32).
"Pela janela norte de meu quarto brilha a Estrela Polar com misteriosa luz. E durante as diabólicas longas horas de escuridão, ela ali brilha" ( primeiras linhas de Polaris, pág. 45).
"...e a Cabeleira de Berenice tremula fantasmagórica e distante no misterioso leste..." (Polaris , pág. 45).
"No vale de Nis, a maldita lua minguante brilha palidamente..." (Memória, pág. 65).
" (...) Alinhada está a verdura em cada encosta, onde vinhas malignas e trepadeiras rastejam..." (Memória, pág. 65).
"Odeio a lua, tenho medo dela..." ( O que vem com a lua, pág. 67).
Lovecraft foi portanto muito mais do que o autor de cenas nauseantes priorizadas nas adaptações de sua obra para o cinema. Foi um escritor de fantasias com perspectiva sombria, enveredou pela ficção científica e até no macabro puro - porém de forma muito pessoal, e, com freqüência, sugestiva.