julia 11/06/2020Eu fui ler esse conto com altas expectativas, porque eu já tinha lido outro livro da Octavia Butler (Kindred) que eu também peguei com altas expectativa que foram sumariamente superadas. E, bem, preciso admitir que aconteceu a mesma coisa de novo. Eu estou profundamente abalada e maravilhada.
Esse livro está (estava?) de graça na Amazon e eu corri para baixar assim que apareceu nas sugestões depois de ter comprado um outro ebook. Como eu percebi recentemente que leio muito menos ficção científica do que eu gostaria, passei ele pro topo da minha lista mesmo sem ter ideia do que se tratava. Só de ver a sinopse logo antes de começar já saquei que o negócio ia ser bom. E foi melhor ainda!!!! É uma história tão disparatada que só podia tar certo com uma autora maravilhosa que nem essa.
O texto é absolutamente impecável. Eu raramente leio um conto que eu gosto e saio satisfeita com o final: sempre me deixa um gosto de quero mais, sentindo que algum ponto do enredo ou da construção do universo ficou meio solto. Nesse caso, eu achei perfeito. Obviamente, um universo como aquele poderia ser explorado infinitamente, mas funcionou do jeito que ficou. Tudo é minimamente explicado e o que não é explorado não deixa um buraco na narrativa. A gente sabe o que a gente precisa saber para aquela história fazer sentido.
Outra coisa que eu tendo a não gostar muito: descrições muito gráficas de cenas violentas ou sangrentas. Mas, de novo, a Octavia Butler FEZ DAR CERTO. A intenção era a aflição e funcionou perfeitamente.
E os temas desse conto são inúmeros. Me chamou a atenção que a autora, na nota ao fim do livro, já fala logo de cara que não entende porque as pessoas insistem em dizer que aquela é uma história sobre escravidão. Eu acho que tem vários elementos que justificam sim essa interpretação, eu mesma ficava pensando nisso durante a leitura. Mas ver ela dispensar isso tão plenamente e ainda afirmar que via o conto como uma espécie de história de amor me fez pensar.
Gan tem medo de carregar os ovos da T'Gatoi, mas ao mesmo tempo ele faz uma escolha no final. As outras opções eram péssimas, mas elas existiam. Ele sente carinho, compaixão, amor por uma alienígena que exerce um poder muito concreto sobre ele e a família dele. Ao mesmo tempo, ele e os outros humanos ganham benefícios também muito concretos com essa relação: os ovos que ampliam o tempo de vida, um planeta para viver, ter uma família para si. Sem uma relação harmoniosa entre todos, as duas espécies seriam extintas. Então, será que esse amor que Gan sente é necessariamente impossível? Será que é possível para T'Gatoi vê-lo como algo além de um mero carregador de ovos?
Reformulando a questão: uma vez que se admite que há uma assimetria intransponível em uma relação, o sentimento entre esses dois seres deixa de ser real? E se o domínio não fosse de alienígenas sobre humanos, mas, por exemplo, de homens sobre mulheres? É possível amar o próprio opressor?
Sei lá, acho que é muito fácil descartar o diálogo final entre o Gan e a T'Gatoi como um caso de Síndrome de Estocolmo. Para mim, me parece ser mais complexo do que isso. Porque às vezes, como uma mulher heterossexual, eu também me sinto em uma situação inescapável, em que nenhuma das opções também não me parecem lá muito boas: se eu me apaixono por um homem, o meu sentimento deixa de ser real por estar apoiado numa estrutura de opressão? O amor entre os personagens do conto não é romântico, isso fica claro, mas eu não consegui deixar de ver um paralelo ali. E, talvez ironicamente, o fato dela ter trocado os gêneros (é o homem que carrega os filhos da fêmea) só reforçou essa minha leitura com um enfoque maior nessas questões. É como se a história falasse: a questão não é o gênero em si, mas a relação de poder estabelecida a partir dos corpos.
Ao mesmo tempo, também não consegui deixar de ver um paralelo entre os vermes corroendo o corpo do humanos para a sobrevivência da espécie Tlic e os colonizadores correndo as terras colonizadas para a sobrevivência do sistema capitalista.
E devem ter um milhão de outras leituras possíveis. Porque uma boa história é isso, não é mesmo? Vou ficar séculos pensando nas diferentes maneiras de interpretar todas as possibilidades desse texto, mesmo quando a autora explica exatamente o que ela tinha pensado (aparentemente, era sobre insetos que colocam larvas ao picarem humanos nas florestas tropicais da América Latina).
Leia esse conto, por favor, mas leia durante o dia. Eu li à noite e quase não consegui dormir.