Ricardo Santos 06/09/2016Sutil e brutalEste romance é um triunfo, tanto como peça de ficção quanto de reflexão. Butler flerta com a polêmica ao tratar da escravidão nos EUA de maneira complexa, sem ceder a maniqueísmos. Ganha a autora, por elaborar uma narrativa tão madura. Ganha o leitor, ao se deparar com um texto cheio de nuances e ideias desafiadoras.
Acompanhamos a história de Dana, uma jovem escritora negra, na Los Angeles de 1976 (o romance foi publicado em 1979). Recém-casada, ao se mudar para a nova casa com o marido, Kevin, um escritor branco, inexplicavelmente, Dana é transportada no tempo e no espaço para a zona rural de Maryland, em 1815, antes da Guerra Civil Americana.
Logo ela entende que ali moram seus ancestrais. Dana é descendente de uma mulher negra, liberta, Hagar, fruto da relação entre um fazendeiro branco, Rufus, e uma escrava negra, Alice. Mas Hagar ainda não nasceu. E Rufus e Alice são apenas crianças.
Em sua primeira viagem no tempo, Dana salva Rufus de morrer afogado num rio. Depois de salvá-lo, Dana é quase morta pelo pai do garoto. O medo de morrer faz com que Dana volte para 1976, para os braços do marido. Passaram-se alguns minutos desde sua partida.
Então, ao longo do romance, Dana sempre retornará ao passado quando a vida de Rufus for ameaçada. Assim como ela retornará ao seu presente quando acontecer o mesmo com sua. Enquanto que Dana quase não muda fisicamente em suas viagens, a cada salto no tempo, ela vê Rufus crescer, torna-se homem, alguém mais e mais violento e manipulador.
Dana não sabe como, mas ela finalmente entende por que está ali. Ela precisa manter Rufus vivo até que ele e Alice tenham Hagar, sua ancestral direta, em nome de sua própria existência; algo no estilo De Volta para o Futuro. Enquanto isso, Dana vivencia toda a brutalidade da escravidão.
Sua narração em primeira pessoa emula os relatos de ex-escravos que se tornaram marcantes na literatura americana pós-Abolição. O recurso da viagem no tempo permite um contraste poderoso. A voz de uma mulher negra contemporânea contando sua experiência como escrava. É um discurso articulado, cheio de insights sobre uma variedade de temas (racismo, poder, sexualidade, dominação, escolha…), sempre fazendo conexão com o que acontece com a mulher negra no passado e no presente.
O texto é fluido, direto e imersivo. Butler soube muito bem equilibrar pesquisa e invenção. A voz de Dana nos passa toda a verossimilhança daqueles EUA do século 19, de como aquela sociedade funcionava, com seu cheiros, gostos e costumes. Principalmente, tomamos conhecimento da mentalidade de posse sobre a população negra.
O elenco de personagens mostra pessoas negras e brancas de maneira complexa, no contexto brutal da escravidão. A relação entre mestres e escravos não é feita entre monstros e pessoas subservientes. E sim entre gente branca comum, que detém o poder sobre os corpos de suas "propriedades", apoiada por toda uma sociedade escravocrata, e gente negra aviltada, que detém apenas o poder de cometer suicídio ou tentar uma difícil fuga para a liberdade, sem nenhuma estrutura com que possa contar.
Kindred é um romance importante por expor, de maneira nada convencional, a desumanidade da escravidão e por reafirmar como esse mal tem tudo a ver com o racismo e as tensões sociais dos últimos duzentos anos nos EUA (mas só por lá?).