Paulo 24/04/2018
1 - A Busca Onírica por Kadath (1 coruja)
Essa não é a minha primeira experiência com Lovecraft. Já havia lido O Chamado de Cthulhu em outra oportunidade e a história também não havia batido com o meu gosto literário. Sofri até mesmo com o estilo de escrita que fez com que um conto simples demorasse muito mais tempo para mim. Enfim, antes de lerem a minha resenha, saibam que ela foi afetada demais pela minha experiência de leitura que foi péssima. Em nenhum momento eu me senti à vontade lendo o autor. Não sei responder se foi a escrita do autor mais antiga (apesar de eu adorar histórias góticas... Mary Shelley é uma das minhas autoras favoritas), se foi a tradução que não estava boa ou se eu não estava em um bom momento para ler este livro. Ou uma conjunção de fatores.
A resenha que segue é apenas da novella A Busca Onírica por Kadath. Pretendo fazer uma outra postagem falando sobre os contos que estão nesta edição da Hedra.
O autor nos apresenta um personagem que segue uma busca por uma cidade mítica após um lugar chamado Kadath, onde vive um terror antigo. Somos guiados pelo personagens por lugares assustadores onde criaturas como gugs, ghouls e shantaks habitam a cada esquina. Ou seja, estamos diante de uma jornada fantástica onde somos apresentados a esses lugares e o autor aproveita para construir a mitologia por trás de seu mundo. Ao longo do percurso o protagonista passa por uma série de dificuldades e precisa ultrapassar diversos obstáculos. O que podemos ver no romance é um enredo de uma jornada por um lugar obscuro e repleto de perigos, algo que estava bem na moda na época em que Lovecraft publicou a novelleta. Jules Verne já havia tentado isso em obras Viagem ao Centro da Terra. A diferença é que o autor inseriu elementos de terror e abstração ao que experimentávamos durante a narrativa.
A ambientação é criada de forma a causar confusão no leitor. Por se tratar de um lugar onírico, um mundo dos sonhos, tudo é criado com algum tipo de simbologia ou significado ulterior. Então, por exemplo, nós encontramos os ghouls que são criaturas corcundas que devoram os mortos, os noctétricos, criaturas voadoras que levam suas presas até o seu amo, um dos Outros Deuses. Sejam as catacumbas que ficam nos planos inferiores, à planície de Leng ou até o palácio de ônix, tudo tem algum tipo de significado: medo, pavor, morte, terror, apreensão. Símbolos esses representados pelas criaturas com quem Carter interage ou os lugares que ele percorre. Ao mesmo tempo em que a ambientação é muito boa, eu a achei confusa. Ao longo de toda a narrativa, o autor se perde remetendo momentos da jornada do personagem a histórias insólitas deste mundo onírico. Cita lugares e pessoas, sem termos tempo de nos acostumarmos à sua escrita ou à jornada de Carter. Em vários momentos, algo que era para ser uma descrição de uma situação ou de um acontecimento se torna um fluxo de pensamento enlouquecedor do qual vamos levar várias páginas para nos recuperar. E todas essas referências em nada contribuem com a jornada do personagem.
A escrita de Lovecraft é feita em terceira pessoa a partir do ponto de vista do Carter. Acompanhamos sua jornada como se fôssemos seus olhos e observássemos suas ações. Estamos diante de um discurso indireto onde não há diálogos, salvo em alguns momentos em que ele cita determinadas falas (ele vai citar algumas lá no final). A novelleta não tem separações ou subseções, sendo um romance escrito de forma direta. Isso me incomodou porque acaba não criando espaço para o leitor respirar um pouco antes de continuar a trama. Não temos separações de cena, ou trocas de ângulo. São 118 páginas de escrita pura, descritiva e direta. Para mim, apesar de ser um romance pequeno, foi bem cansativo. Uma escrita bem pesada e carregada; nesse sentido não sei dizer se se trata da escrita do próprio Lovecraft ou da tradução. Até penso em pegar a tradução da DarkSide para saber se existe alguma diferença entre versões.
Não há bem uma construção de personagem. O que vemos é que o protagonista não muda muito ou se desenvolve ao longo da narrativa. Isso não é uma falha, já que a proposta das narrativas de jornada é apenas apresentar a jornada em si. Nos escritos contemporâneos é que a ideia de jornada se confundiu com a noção de jornada do herói. Quem ler qualquer romance de Jules Verne vai se tocar desse detalhe: os personagens não evoluem psicologicamente, sendo apenas a sua jornada que chega ao fim de alguma forma. Por outro lado, Carter segura bem a trama em torno de si e até vemos a presença de algumas menções feitas a outras histórias e contos de Lovecraft como o fato de Carter ter salvado um gato em outra história, ou o encontro com Pickman, personagem oriundo de outro famoso conto do autor, O Modelo de Pickman.
Enfim, eu espero que os fãs do autor não fiquem chateados comigo. É simplesmente que a narrativa não funcionou para mim. O motivo não vou saber dizer. Eu queria aquela sensação de medo e apreensão que vemos em outras histórias como O Chamado de Cthulhu ou o pavor cósmico de O Modelo de Pickman. Tal não se sucedeu aqui e admito que foi uma leitura bem arrastada. Não recomendo o conto para quem quer começar a ler Lovecraft. Para tal existem histórias mais acessíveis como Nas Montanhas da Loucura ou O Terror que Veio do Espaço.
2 - A Chave de Prata (3 corujas)
Podemos situar esse conto em dois momentos: um em que ele critica o desencantamento do mundo e o segundo como o personagem de Randolph Carter descobriu os mundos oníricos. Dá até para sentir um certo elemento autobiográfico aqui, se é que é possível dizer isso. A Chave de Prata é um conto simples sobre uma chave dentro de um baú trancado capaz de abrir os portões para incontáveis mundos. Randolph Carter sente uma atração terrível por esta chave, mas quando cresce ele esquece de suas aventuras vividas em outros planos.
O autor trabalha bastante com a noção de desencantamento do mundo. E isso era um fenômeno que se tornou muito perceptível no início do século XX. Casa até com as teorias filosóficas de Nietzche com a proposta da morte de Deus. Não é que Deus ou os deuses tenham morrido, mas é que o homem acabou se voltando demais para o lado prático da vida. O Iluminismo, movimento filosófico dos séculos XVII e XVIII acabou por provocar essa separação entre a razão e a fé, e os mitos antigos acabaram perdendo espaço frente a uma racionalização total do mundo. Os mundos oníricos de Lovecraft nada mais são do que uma liberdade para o homem sonhar, seja com algo terrível ou com o fantástico.
O maravilhoso se tornou chato. Aquilo que levava ao fantástico foi substituído por religiões normativas que diziam ao homem como pensar. Mesmo as religiões que seriam a passagem do homem para o inexplicável, procuram racionalizar o mundo mostrando formas de conduta, maneiras de se portar. É uma crítica pesada de Lovecraft às religiões monoteístas que ganhavam cada vez mais espaço nas mentes dos homens. Lovecraft defendia a liberdade do homem para encontrar aquilo que ele achava maravilhoso. Retomar algumas ideias antigas de se relacionar com aquilo que não era passível de ser explicado.
Na segunda parte, vemos como Randolph Carter encontra a chave de prata. É engraçado o contraste entre o Randolph adulto e a sua curiosidade infantil. O mundo adulto tirou tanto o seu encantamento que ele não mais capaz de navegar pelos sonhos. Na sua infância um simples objeto dava asas à sua imaginação. O contato com esse objeto serviu como um abrir de olhos para ele. Lhe permitiu ser capaz de prever situações, de imaginar coisas e de fazer comentários sutis que só fariam sentido muito depois. É interessante ver esse contrasta porque Lovecraft brinca com a riqueza da imaginação infantil e com a banalidade e o racionalismo da vida adulta. No fundo, o que ele quer é retomar essa capacidade da criança de criar o inimaginável.
Finalmente eu comecei a entender um pouco melhor Lovecraft. A escrita dele me incomoda um pouco devido ao seu hábito de tornar tudo majestático, grandioso. Mas, admito que me incomodou menos do que em A Busca Onírica por Kadath. Creio que agora eu consiga retirar mais coisas do que ele escreve. E até começo a gostar mais dos temas de suas histórias.
3 - Celephäis (2 corujas)
Aqui temos um conto que toca novamente no tema da infância e de como o homem perde esse contato com a imaginação na vida adulta. Todas as vezes que Kuranes sonha ele se depara com uma cidade desolada. À medida em que ele caminha por esse terreno, ele começa a se deparar com coisas maravilhosas como as planícies de Leng e até outras paisagens oníricas. Mas, o que ele quer mesmo é encontrar Celephäis, a cidade de maravilhas de outros mundos e de belezas inenarráveis. Para isso, ele vai se refugiar cada vez mais no mundo dos sonhos até alcançar o seu objetivo. Mas, isso terá consequências terríveis para ele.
Já falei de o quanto Lovecraft valoriza a capacidade infantil de imaginar coisas maravilhosas. E de o quanto a vida adulta causa uma espécie de desencantamento. Neste conto, temos um símbolo que ilustra essa visão lovecraftiana: a cidade desolada. O que me pareceu é que esta cidade era linda e magnífica, formada pelas criações de Kuranes quando era mais jovem. À medida em que ele foi crescendo e sua mente foi se desvinculando dessas "brincadeiras de criança", a cidade foi ficando abandonada. As casas foram destruídas pelo tempo, a relva cresceu e ninguém mais habita o lugar. Certamente os outros lugares que Kuranes visitou eram fruto da imaginação e dos sonhos de outras pessoas.
A busca de Kuranes pode ser espelhada em nossa busca por um mundo melhor. Estamos a vida toda buscando a felicidade absoluta, só que ela é impossível de ser alcançada em nosso mundo materialista. Para Lovecraft, apenas no mundo dos sonhos isso poderia ser alcançado. E essa utopia é individual para cada um já que forma um lugar próprio a ser explorado pelas pessoas. Percebam que Kuranes não alcança Celephäis até que ele abandona a vida física. Isso é um símbolo de que apenas com a morte somos capazes de alcançar este lugar idílico (não disse que o personagem morreu ou não... isso é algo que foi possível deduzir a partir do que Lovecraft escreve). Essa mesma ideia vai ser retomada em outro conto presente aqui, "Os Outros Deuses".
A liberdade de pensamento é explorada de forma bem curiosa pelo autor. Quando dizemos que é preciso dar asas à imaginação, Lovecraft leva isso a um outro patamar. Para dar liberdade para Kuranes, o autor o coloca em um navio capaz de explorar os mares e levá-lo a lugares incríveis. Esse mesmo navio é capaz de voar para alcançar localidades longínquas. Esse simbolismo do mar remete às Grandes Navegações, série de explorações marítimas dos séculos XV e XVI, onde o europeu descobriu que o mundo era muito maior do que ele imaginava. Essa ideia de explorar um "Novo Mundo" é retomada aqui.
Aos poucos eu estou me familiarizando mais com a escrita do autor e conseguindo perceber as diversas nuances presentes em sua narrativa. Gostei de Celephäis e recomendo aos leitores.
4 - Os Gatos de Ulthar (2 corujas)
Esse conto nem dá para comentar muita coisa porque se trata de quatro páginas. Só vou contar o básico a respeito: fala de uma vila onde os gatos não podem ser mortos por humanos. O conto trata de explicar por que essa regra foi criada. Aliás, o conto tem alguns toques bem de terror, mas com bastante sutileza.
Queria comentar só sobre alguns aspectos sobre os gatos mencionados por Lovecraft aqui. Em relação a matar gatos, existia uma crença antiga que dizia que se uma pessoa matasse dezenas de gatos e bebesse seu sangue, ele era capaz de prolongar sua vida. Isso porque os gatos possuem nove vidas e tal poderia ser transferida para aquele que estivesse conduzindo o processo. Foi uma lenda surgida na Idade Média entre aqueles que praticavam a alquimia.
Segundo, temos os gatos como animais muito importantes no Egito antigo. A deusa Bast era representada como um gato. A esfinge também tinha um aspecto felino. Dizia-se que os gatos eram animais que possuíam um pé no elemento sobrenatural. Por essa razão, estes animais possuíam seus sentidos apurados para fatos inexplicáveis. Esse mito do gato como portador de um sentido sobrenatural chegou também à Idade Média onde alquimistas procuravam ter um gato por perto.
Ainda falando de Egito antigo, Menes, o jovem menino que trouxe um gato preto à vila de Ulthar, pode ser oriundo da figura história de Menés, primeiro governante do Egito. Isso muito antes da união dos reinos do norte e do sul. Menés foi um poderoso conquistador e foi capaz de juntar ambos os reinos para formar aquilo que viria a ser o Egito que conhecemos na história da Antiguidade. Lovecraft tem um apreço grande por estes mitos antigos e costuma incorporá-los aos seus contos.
5 - Outros Deuses (2 corujas)
Neste conto temos um estudioso chamado Barzai e seu pupilo Atal (um personagem que estava presente no conto Os Gatos de Ulthar) que estão seguindo uma longa jornada até Hathor-Klag, uma montanha elevada no alto de uma cordilheira onde dizem que os deuses terrenos faziam danças estranhas e seres misteriosos observavam do alto. Durante o caminho, Barzai vai compartilhando suas descobertas com os aldeões das vilas próximas.
Também não dá para falar muito deste conto, por ele ser bem direto ao ponto. Vou me ater a alguns detalhes dele. Durante o trajeto, Lovecraft vai dizendo que Barzai está tendo mais facilidade para subir a montanha do que Atal que acaba escorregando ou não conseguindo pular certos trechos. A interpretação que eu tive desse trecho é que Barzai estava preparando o seu espírito para a morte. Alguns especialistas dizem que o homem, percebendo o que vai ser o seu momento final, recebe um último ímpeto que lhe dá uma energia fora do comum para realizar determinadas tarefas. É como se o próprio corpo indicasse que estaria partindo e preparava uma última apoteose para o indivíduo.
Outra coisa que vale destacar é como Lovecraft gosta de trabalhar com a noção do conhecimento proibido, acessível apenas a um grupo pequenos de estudiosos. Estes estariam dispostos a enfrentar quaisquer situações relacionadas à escuridão. Assim é com os tais Manuscritos Pnakóticos. Isso revela o quanto o autor é influenciado por elementos de conhecimento místico como na alquimia. A ideia do conhecimento secreto chega até nós na forma das sociedades secretas, outro tema que o autor abraça em seus contos. Aqui nem tanto.
Na mitologia de Lovecraft, a perdição é cair no vácuo do espaço. Os deuses siderais estariam em um patamar superior aos deuses terrenos. Aos homens sequer olhar para estes deuses significa a perdição e o esquecimento. Curiosamente, Lovecraft não dá nome a nenhum dos deuses terrenos. Ou seja, estamos diante de mais um conto que ajuda a construir ainda mais a mitologia espacial do autor. Recomendo a leitura que é bem rápida.
6 - O Navio Branco (1 coruja)
Neste conto vemos um Lovecraft ainda experimentando a sua escrita. É muito interessante ver como ele foi profundamente influenciado por Lord Dunsany. A escrita majestática, os simbolismos presentes a todo o momento. Claro que com o passar dos anos, o autor vai inserindo o seu próprio estilo na narrativa. Nesta história, temos Basil Eaton, capitão do Navio Branco do Sul, tentando alcançar um lugar de belezas inenarráveis além das costas de Carthúria. Ainda tem alguns problemas para manter o leitor atento até o final, mas já possui muitas qualidades que darão o tom mitológico aos escritos do autor.
Queria comentar os simbolismos presentes na narrativa. Primeiro a presença da lua o tempo todo no conto. Do começo ao final. A Lua tem a ver com os aspectos sobrenaturais. Os elementos selênicos (de Selene, que representava a lua em tempos passados) constituem a porta de entrada para os mundos oníricos e espirituais. O próprio navio é na cor branca o que representa esse contato com a espiritualidade. De destaque como a lua cheia é importante para que o sobrenatural possa acontecer (interessante porque eu sempre associei à lua nova). Os marinheiros ficam apreensivos porque sabem o que a lua representa para a navegação. Não apenas é a luz que permite a eles navegar à noite, mas também é a lua que traz os maus espíritos e os demônios do abismo.
Outro simbolismo presente é o da canção que encanta os marinheiros. Os seres de Thalarion atraem os incautos com suas canções e os levam à perdição. É uma cidade marcada pela ignomínia e pela maldição. É uma clara inspiração no mito das sereias, mas acho que nesse caso aqui consigo enxergar mais o monstro Scylla. Porque não se trata de mulheres magníficas atraindo marinheiros pela sedução, mas de um monstro que encanta através da música.
Um pássaro cerúleo marca o final da narrativa. Me peguei pensando em que tipo de símbolo Lovecraft estaria pensando nesse momento. Pode ser algo bizarro, mas eu imaginei a pomba branca enviada por Noé para encontrar terras férteis depois do Dilúvio. Porém, essa pomba azul estaria levando os marinheiros para o fim do mundo. Diferente de um pássaro branco que traria a paz, esse pássaro específico levaria todos para um final cruel. Não vou comentar mais para não estragar o final, mas a maneira como a imaginação do autor dá voltas e voltas por mitos e lendas variados é o que o torna tão especial.
O Navio Branco não foi um conto que me encantou muito como os anteriores. Entretanto, a gente consegue perceber a imaginação do autor e como suas engrenagens trabalham para compor aquilo que ele sabe fazer melhor. Não recomento tanto esse conto a menos que você seja um fã daquilo que ele escreve. Vale para conhecer a evolução de sua escrita.