Coruja 09/02/2011Tolkien, uma biografia e As Cartas de J. R. R. Tolkien estavam lado a lado na estante da livraria quando me deparei com eles algum tempo atrás. Dúvida não havia que, se era para ler sobre alguma figura histórica, eu leria sobre um dos meus autores favoritos. A questão agora era só escolher se que forma eu preferia fazer isso.
Ler uma biografia, escrita por outra pessoa que não a própria figura-objeto da mesma, significa enxergar o biografado pelo olhar de outra pessoa, filtrada pelas opiniões e pré-conceitos dessa outra pessoa. Imparcialidade absoluta é algo, ao final das contas, impossível de se alcançar.
Assim, preferi ler Tolkien elo próprio Tolkien, ainda que severamente editado. Sei que uma coletânea de cartas não se trata exatamente de um mémoir, mas aí é que está a questão: lemos essas biografias e memórias na tentativa (e ilusão) de conhecer essas pessoas. Mas, se queremos realmente conhecê-las, será que não é melhor julgá-las pelas suas próprias palavras em vez de por um punhado de dados e fatos oficiais juntados por um biógrafo, por mais judicioso que este seja?
O caso, no final das contas, é que não me arependo da minha escolha. Sempre admirei Tolkien como autor - a imaginação, o talento, o detalhismo e perfeccionismo, a paciência. Quando li, em dezembro, Cartas do Pai Natal, comecei também a admirá-lo como homem e como pai.
Na verdade, mais que a figura do escritor, o que emerge das cartas de Tolkien é sua figura de homem de família. O amor pela esposa, Edith, e pelos filhos, é palpável em cada uma das missivas dedicadas a eles.
A correspondência de Tolkien revela também um senso de humor maravilhoso - adoro as tiradas irônicas, sempre muito elegantes, mas ainda assim direto ao alvo. Exemplo disso foi a resposta dele quando editores alemães, interessados em publicar O Hobbit, perguntaram sobre sua ascendência:
"25 de julho de 1938
20 Northmoor Road, Oxford
Caros Senhores,
Obrigado por sua carta... Lamento informar que não me ficou claro o que os senhores querem dizer com arisch. Não sou de origem ariana: tal palavra implica indo-iraniana; que eu saiba, nenhum dos meus antepassados falava flindustani, persa, romani ou qualquer dialeto relacionado. Mas se devo deduzir que os senhores estão me perguntando se eu sou de origem judaica, só posso responder que lamento o fato de que aparentemente não possuo antepassados deste povo talentoso. Meu tataravô chegou na Inglaterra no século XVIII vindo da Alemanha: a maior parte da minha ascendência, portanto, é puramente inglesa, e sou um indivíduo inglês — o que deveria ser suficiente. Fui acostumado, no entanto, a estimar meu nome alemão com orgulho, e continuei a fazê-lo no decorrer do período da lamentável última guerra, na qual servi no exército inglês. Não posso, entretanto, abster-me de comentar que, se indagações impertinentes e irrelevantes desse tipo tornar-se-ão a regra em matéria de literatura, então não está longe o tempo em que um nome alemão não mais será um motivo de orgulho. O questionamento dos senhores sem dúvida é feito para estar de acordo com as leis de seu próprio país, mas seria inapropriado pensar que isso deveria aplicar-se a indivíduos de outro Estado, mesmo que isso tivesse (se bem que não tem) qualquer relação com os méritos do meu trabalho ou sua adequação à publicação, com a qual os senhores aparentemente ficaram satisfeitos sem referência a minha Abstammung.
Tenho fé de que os senhores acharão essa resposta satisfatória, e permaneço fielmente seu
J. R. R. Tolkien."
Ao mesmo tempo, há um mundo de curiosidades a ser desvendadas - detalhes sobre filologia, genealogias e História da Terra-Média, sobre as quais Tolkien disserta em diversas missivas para leitores e editores de sua obra.
De mais a mais, é um livro que vale à pena - muito à pena - para qualquer aficcionado por Tolkien. É uma chance de conhecer um pouco mais desse homem extraordinário - tanto no alcance de sua obra, quanto em sua vida.