Luise 02/01/2017Você vai ser arrancado do conforto e amar issoOs textos do DFW exercem, sobre mim e imagino que sobre muitos outros leitores também, uma espécie de atração magnética. É como se tudo o que ele escreve falasse para diversas camadas interiores nossas, e com Breves entrevistas com homens hediondos (publicado originalmente nos Estados Unidos, em 1999) não foi diferente. O ponto chave dos contos intitulados Breves entrevistas com homens hediondos (que somam um total de 4 ocorrências ao longo do livro, contendo diversas entrevistas cada uma), pra mim, é a diferença gritante do lugar que a voz feminina e as vozes masculinas ocupam na narrativa. Todas essas entrevistas são falas de diferentes homens para uma única mulher, que colecionou as passagens ao longo dos anos. O que ela diz permanece implícito, sendo apenas assinalado por um P. Em muitos trechos lemos os homens falando com pretensa propriedade sobre mulheres, e isso incomoda. Mas é pra incomodar. Acontece cotidianamente, na vida de uma mulher, que ela tenha sua voz silenciada por uma opinião masculina que quer sempre reinar. As entrevistas simulam a experiência feminina de ouvir passivamente homens falando sobre elas mesmas e dando muito mais peso ao que eles acham que é ser mulher. No mais, a respeito das situações propriamente ditas, certamente em alguma os leitores e leitoras vão se identificar: é o namorado que quer terminar pelo comportamento gerado pelo medo que a mulher tem de que o namorado termine; é o cara que se empolga ao discorrer sobre como ser um grande amante e não enxerga suas próprias contradições; é o outro namorado que vai embora assim que a conquista está feita.
A pessoa deprimida, o sexto conto e com certeza um dos meus favoritos, possui a virtude de mexer fisicamente com quem lê. Caímos de expectadores da vida de uma mulher deprimida que busca, ao lado de sua terapeuta e de uma rede de amigas selecionadas, sobreviver à sua depressão. Quando nos damos por conta, estamos igualmente preocupados, assim como a personagem, com as perspectivas de que o interesse da terapeuta nela não passe de uma relação estritamente profissional e de que suas amigas a achem tediosa. O conto mexe com a agonia gerada pela percepção de que talvez os outros não nos levem tão a sério quanto nós mesmo e com o medo de que, afinal, não sejamos especiais. E a própria personagem acaba, enfim, praticante do mesmo egoísmo ao se importar com os outros apenas no que concerne a ela mesma.
No conto Octeto, um do que mais surpreendem, somos ativamente desafiados a responder 3 Pop Quizes “e meia”, como define DFW. Cada Pop Quiz apresenta a história de uma situação à qual, ao final, devemos formular uma resposta. A missão é desconfortável pois nos vemos na posição de julgar pessoas e questões que não são, como tudo na vida, boas ou más ou que exigem uma resposta de simples “sim” ou “não” (querem tarefa mais difícil do que julgar uma mãe? Pois, ao final da Pop Quiz 7, é o que você vai ter que fazer). Agora, a Pop Quiz que mais vai dar nó nas cabeças por aí é a de número 9. Como o título do conto sugere, ele originalmente foi planejado para conter 8 situações interligadas entre si. Acontece que 5 dessas Quizes não deram o resultado esperado e, portanto, não foram publicadas. Em última instância, na Pop Quiz 9, David Foster Wallace em pessoa vem contar pra gente que o conto que ele havia planejado não deu certo e faz, ainda, um convite gentil para que o leitor se coloque literalmente no lugar do escritor. O que precisamos decidir é se, como escritores, optaríamos ou não pela adição dessa Pop Quiz extra explicando a ideia inicial do conto, seu processo de escrita e o que aconteceu ao final. No caso de David Foster Wallace, sabemos que a resposta a essa questão foi afirmativa.
Existem, aliás, diversas ocorrências da figura de um escritor dentro do livro, como no segundo conto, A morte não é o fim, protagonizado por um poeta, e da presença de Ovídio, o Obtuso, que cria nada menos do que um mito em Tri-Stan: eu vendi Sissee Nar para Ecko. O mais interessante é que o trabalho e a própria figura de David Foster Wallace estão sugeridos em outros detalhes da coletânea, mesmo que de forma mais sutil do que no Octeto. Mais um exemplo da porosidade de certas fronteiras, por exemplo, são pequenos contos numerados com 3 ocorrências ao longo do livro. Essa numeração expõe, por si só, que dentre uma lista muito maior apenas 3 partes foram escolhidas para aparecer ao público. Já Adult World II é o esquema da continuação de Adult World I que não chegou a ser executada, dando uma pista de como DFW pensava e planejava seus contos.
O livro guarda outras joias, como um dicionário digital que define os relacionamentos no ano de 2096; a narração paterna da sua repulsa e que me fez sentir igual repulsa pelo pai (não pelo fato de desgostar do filho, mas pelas atitudes desse homem principalmente no que tange à sua mulher); e o conto O suicídio como uma forma de presente, que instiga já pelo título e diz muito em poucas páginas.
Ainda em tempo, alguns comentários sobre a edição: como é costume da editora Companhia das Letras, o trabalho gráfico está bem feito. Também gostei muito da capa, que ainda combina com a de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, o livro de ensaios do mesmo autor. Fica uma observação importante, porém: por tratar-se de uma reimpressão da primeira edição de 2005, o livro não segue o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O único elemento atualizado foi a orelha, que menciona o recente lançamento de Graça infinita.
Breves entrevistas com homens hediondos é um difícil e constante exercício de empatia. David Foster Wallace consegue captar e esfregar na nossa cara os aspectos mais mesquinhos, egoístas e repulsivos da condição humana, e após o estranhamento e o desconforto iniciais, o que reina é a angústia por saber que fazemos parte dessa humanidade. Quando o autor quer, nos vemos na posição de seres, na essência, tão hediondos quanto essas personagens. Mas o livro certamente proporciona muito mais momentos de prazer e fascínio, principalmente pela escrita tão particular do eterno DFW.
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