Edson Medeiros 05/01/2021
O testamento de Kafka: a arte que enlouquece e o fascismo que destrói
Das obras finalizadas por Franz Kafka, e das quais o autor pretendia publicar, a coleção de contos de Um artista da fome talvez seja a mais pessoal. As narrativas aqui reunidas apresentam metáforas sobre o artista e sua relação com a arte, pode-se dizer, então, que tratam-se de reflexões de Kafka sobre suas aspirações literárias, ofício ao qual nunca pôde dedicar-se inteiramente. Já a novela A construção cresceu demais e acabou cortada da publicação original, mas foi convenientemente escolhida pela Cia. das Letras para fechar esta coleção.
No conto que dá título à obra, Um artista da fome, o obstinado faquir sente a necessidade de colocar-se cada vez mais a prova aumentando indeterminadamente os dias do seu jejum, não importando se sua arte já não interessa a mais ninguém, em “Primeira dor” o trapezista mantém-se dia e noite nas alturas, isola-se do mundo por amor ao trapézio, seu maior tormento é descer das alturas quando o circo itinerante está a mudar de praça, por sua vez, “Josefina, a cantora ou o povo dos camundongos”, é um convite a reflexão sobre a pseudo-arte, onde a protagonista acredita possuir qualidades superiores e, por isso, merecer determinadas vantagens sociais — ainda que ninguém seja capaz de dizer se o que ela faz é realmente arte.
Em "Josefina, a cantora ou o povo dos camundongos" há a ligação com “Uma mulher pequena”, impedindo que fique solta a única narrativa que destoa do tema central de Um artista da fome. A inquietação que aflige o passivo protagonista sobre quem recai o desarrazoado ódio da “mulherzinha”, também permeia a “sociedade dos camundongos” que está sob a constante sensação de ataque, ainda que os pequeninos cidadãos não modifiquem seus hábitos ou façam provisões para uma possível defesa. Neste sentido, o posfácio do tradutor Modesto Carone facilita a conexão: Kafka os escreveu em Berlim, entre 1922-23, enquanto o nazismo era gestado na sociedade alemã.
A construção segue o estilo das principais obras do autor, texto denso, labiríntico, absurdo, mas também revela sua inquietação com o autoritarismo fascista e o sentimento antissemita. A história do animalzinho atormentado pela incapacidade de viver em segurança, seja no mundo exterior ou no seu esconderijo subterrâneo, é a história das minorias na República de Weimar.
Um artista da fome e A construção são os verdadeiros testamentos literários de Kafka, retratando o tormento dos seus últimos dias, escritos enquanto ele tentava sobreviver a partir da sua produção artística, sofrendo com a tuberculose que encurtaria sua vida, e enquanto se via encurralado em razão das agitações político-sociais na Europa.