A varanda do Frangipani

A varanda do Frangipani Mia Couto




Resenhas - A Varanda do Frangipani


30 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2


DIRCE 07/03/2015

Blá, blá, blá como fonte de energia e de encantamento.
Há momentos em nossas vidas que necessitamos de uma “máscara de oxigênio” e movidos por essa necessidade, jogamos tudo para o alto ( eu e meu marido) e nos ausentamos por uns dias do nosso lar doce lar. Ao chegarmos ao nosso destino, me dirigi a biblioteca e quem é que me recebe? Ele – Mia Couto e o seu “A Varanda do Frangipani”. O Olimpo me sobrou que eu estava diante de uma fonte de oxigênio inesgotável e abri um sorriso que foi de orelha a orelha.
A temática do livro pouco foge às temáticas abordadas por Mia Couto em seus romances: os efeitos desastrosos e devastadores da colonização, da ocidentalização, das guerras, enfim o mesmo blá, blá , blá de sempre. O que? Blá, blá, blá ? E em se tratando de Mia Couto, essa afirmativa é nada mais nada menos que abominável, pois estou falando de um escritor que proporciona ao leitor , em cada obra, experiências únicas e a leitura do “ A Varanda do Frangipani” não foi uma exceção.
Com sua prosa poética - sua característica- e se utilizando de metáforas Mia Couto aborda neste romance o desprezo pelo antigamente e para isso cria um romance com nuance policial que se inicia com Ermelindo Mucanga - um condenado à condição de um fantasma ( um xipoco) por não ter tido um funeral de acordo com as tradições Mucangas - mostrando sua insatisfação diante da sua promoção a herói-póstumo. Para fugir desse seu “destino” Ermelindo se vê obrigado a ocupar o corpo de Izidine Naíta, o inspetor de polícia encarregado de desvendar um crime ocorrido em uma fortaleza que outrora serviu para proteger os portugueses e que foi transformada em um asilo. Ermelindo teria uma breve vida: seis dias, o tempo previsto para desvendar o crime.
Nesses seis dias, Izidine entrevista os asilados e assassinos confessos e, por meio dessas entrevistas , nos deparamos com os dramas de cada asilado e que também é o drama de uma país pós colonial.
A missão do policial era desvendar um crime- o desaparecimento do Vasto Excelêncio-entretanto, também nos é dado constatar que a fortaleza é testemunho de um crime que não é exclusividade de Moçambique – o abandono dos idosos. Há uma passagem que me tocou profundamente : Salufo resolve deixar o asilo , mas para poder contar com o cuidado de parentes é obrigado a mentir – ele diz ser possuidor de bens materiais.
Merecedor de destaque é o título : “A Varanda do Frangipini, pois além de instigador ele tem papel fundamental no destino do Ermelindo e dos asilados. Varanda. no livro, refere-se a Fortaleza de São Nicolau e é uma alusão a Moçambique e Frangipani ,de acordo com o glossário constante do livro, é uma árvore tropical que perde toda folhagem o período de floração. E foi essa árvore , quando no final, reduzida a um tosco esqueleto quem me proporcional uma experiência quase transcendental. Penso que, quando no início do romance, Ermelindo rejeitou a condição de herói, desconhecia ser esse seu carma, pois quando deixou o corpo do seu hospedeiro e correu para salvá-lo , ao meu ver se transformou em um. Sim, Ermelindo foi um herói, desta feita, não um herói por conveniência, por interesse político, mas sim por salvar Izidine e também por reconhecer o quanto foi omisso e o quanto sua vida tinha sido uma farsa. Por sorte, ele teve um segunda chance e soube aproveitá-la, fazendo jus assim, ao seu tranquilo e derradeiro sono, e é a frangipini, que renasceu das cinzas, a sua eterna morada e também a dos seus seguidores.
Não. Não foi o Olimpo que me soprou nos ouvidos que A Varanda do Frangipani seria minha máscara de oxigênio, seria meu combustível. Minha certeza é decorrente das leituras anteriores que fiz dos romances de Mia Couto , uma vez que todas elas me provocaram uma sensação única e praticamente impossível de descrever.
Certa que encontrarei muitos blás, blás, blás em futuras leituras de Mia Couto que me proporcionarão novos encantamentos, encerro aqui esse meu blá, blá, blá.

comentários(0)comente



13marcioricardo 02/12/2021

Surpreendente
Meu primeiro contato com Mia Couto. E já sabia que este nem está entre os seus dois principais livros. Que agradável surpresa. Merece ser lido, sem dúvida.
comentários(0)comente



Cleberson 26/03/2021

Estou conhecendo o autor agora e a característica que todos comentam sobre suas obras fica bem evidente aqui: as críticas a determinados fatores da sociedade moçambicana. Gostei pela forma que isso foi desenvolvida. Recomendo.
comentários(0)comente



Zezinho 07/12/2020

Primeiro livro que li do Mia. Fiquei meio perdido com as personagens, com a linguagem, com o enredo. Mesmo assim, Mia tornou-se um dos escritores de vida!
comentários(0)comente



Paulo 10/05/2022

Mágico e poético
A escrita de Mia Couto é cercada de tradição, magia e a mais pura poesia que pode existir. A história foi bastante interessante, ele traz assuntos necessários de forma discreta, mas de um jeito que o leitor se pega pensando sobre. O final do livro foi incrivelmente lindo, foi realmente um final que se fechou com chave de ouro. Adorei.
comentários(0)comente



Cris 10/02/2020

O encontro com o lendário
Gosto muito dessa façanha do Mia Couto de inserir nos enredos de seus livros o apreço pelo lendário e a oralidade, em contraste com a guerra.
Trata-se de um romance policial, e nem por isso, os elementos do mítico estão ausentes, tanto que seu narrador é um xipoco (um fantasma), é ambientado num asilo, em que os velhos são uma espécie de protetores da memória.
É um leitura muito dinâmica e muito bonita, leve, apesar de acontecimentos pesados.
comentários(0)comente



Camila 21/02/2021

Maravilhoso, como esperado de Mia Couto
Mais uma vez tive uma experiência deliciosa ao ler um livro de Mia Couto. Ele escreve de forma tão bela e poética, como se cada palavra fosse escolhida a dedo. Não tem como não reconhecer um texto escrito por ele. Não só pela forma como ele usa as palavras, mas pelo que sinto ao ler. De forma tão leve, ele aborda assuntos muito sérios e pesados, e a experiência para o leitor é um misto de emoções. Eu me diverti, senti angústia, tristeza e prazer por ler algo escrito com tanto detalhe e cuidado. A mensagem que mais me marcou foi a de respeitarmos e preservarmos as nossas origens, sejam elas os nossos antepassados, ou as tradições.

Enfim, Mia Couto é um dos meus autores favoritos e ele entregou nesse livro exatamente o que eu buscava encontrar em um texto dele: uma história reflexiva que encanta o leitor pela maestria com que a linguagem é utilizada.
comentários(0)comente



Paula 14/08/2013

Crítica social, beleza e misticismo
Primeira obra de Mia Couto que tive o prazer de ler (e já me encontro querendo mais livros do autor). Não pretendia ler por esses dias, mas aproveitei que o autor vem à Bienal do Rio para lê-lo e quem sabe conseguir um autógrafo. Além disso, os muitos comentários sobre o autor foram sempre positivos e o recente Prêmio Camões que o mesmo ganhou me deram ainda mais vontade de conhecer sua escrita.
Pois bem: Mia Couto é tudo o que falam e mais um pouco. Em A varanda do Frangipani há um pouco de tudo: crítica social a um Moçambique devastado e esquecido no pós-independência; misticismo com personagens que mesclam fé, religião, crendices, mágica e tudo o que pareça surreal demais (aliás, essa é uma das habilidades de Mia: transformar o que parecia impossível em totalmente cabível); pitada de romance; a morte (aqui fantasticamente retratada); e, não menos importante, o tema da velhice.
Confesso que esse último sempre me chama atenção. A história se passa num asilo e a maioria dos personagens são idosos. Cada um cria sua própria realidade à sua maneira recorrendo a uma fértil imaginação para transformar suas mais íntimas aspirações em realidade. Vi-me sem saber a qual "vovô(ó)" me apegar mais, já que todos têm seu valor no romance.
Quanto à escrita de Mia, sinto-me no direito de comentar por ter sido essa a minha primeira (e não última) leitura do autor. Mia tem uma prosa carregada de poesia. E como gosto disso! E como gosto dessa variação do português que parece ficar mais bonito nas palavras dele! Lembrou-me um pouco valter hugo mãe (superficialmente, é claro). Há trechos feitos para serem meditados, lidos, relidos, guardados, saboreados e são eles que fazem a leitura tão prazerosa.
Dou 4 estrelas porque senti que, apesar de minha impressão positiva do autor, Mia pode muito mais.
Obs: um ponto que me agradou na história foi a descrição do "estar morto" que Mia fez. Curioso e muito interessante!
comentários(0)comente



Tamiris Durigan 13/08/2023

Não faz meu tipo de leitura...
Achei a narrativa toda muita confusa, uma mistureba de gêneros que ia de lá para cá e não me dava nada consistente.

Não gostei dos personagens, não gostei dos diálogos, não gostei do clima do livro. Não me conectei a nada.

Consigo identificar a linguagem poética do autor e a critica-denúncia a respeito do abandono ao antigo mas a forma como a história foi feita fez com que, num linguajar bem chulo, eu cagasse para o que estava sendo passado.

O livro é simplesmente chato demais, sinto que não escolhi bem como começar a ler o autor e só reavaliei minha animosidade após ler algumas resenhas.
comentários(0)comente



Marcos Pinto 23/01/2017

Poético
Quando ganhei A Varanda do Frangipani de presente da Susan, minha namorada, tive certeza que teria uma ótima experiência literária e comecei a lê-lo quase que imediatamente. O motivo é simples: Mia Couto é um autor que consegue tocar nos cantos mais profundos da alma humana. Ao terminar a leitura, tive novamente a certeza de que a obra era genial. O motivo? Conto-lhe abaixo.

Ermelindo está morto. Ele morreu um pouco antes da independência do Moçambique. Porém, como ele não foi enterrado como deveria, tornou-se um “xipoco”, um tipo de espírito que não seguiu seu caminho natural após a morte. Ele vive sob a árvore de Frangipani em S. Nicolau, onde funciona um asilo. Um lugar tranquilo para descansar em paz.

Contudo, devido às comemorações da independência e do desejo de autoafirmação do país, Ermelindo está preste a virar um herói nacional. Ele, já morto, não fica nada feliz com isso, pois apenas quer descansar sob a árvore de Frangipani, sem qualquer perturbação. Para fugir, então, de ser incomodado uma vez ao ano, ele resolve que quer morrer novamente, dessa vez direito, para que seu espírito possa seguir seu caminho.

“Não fui homem de ideias mas também não sou morto de enrolar língua. Eu tinha que desfazer aquele engano. Caso senão eu nunca mais teria sossego. Se faleci foi para ficar sombra sozinha. Não era para festas, arrombas e tambores. Além disso, um herói é como o santo. Ninguém lhe ama de verdade. Se lembram dele em urgências pessoais e aflições nacionais. Não fui amado enquanto vivo. Dispensava, agora, essa intrujice” (p. 12).

Para morrer uma segunda vez, Ermelindo encarna no inspetor de polícia Izidane Naíta, que chegou ao asilo para investigar o assassinato d o responsável pela instituição. Assim, incorporado no policial, conhecemos tudo sobre o crime ocorrido e também acompanhamos Ermelindo na sua ânsia de morrer corretamente.

Partindo dessa premissa, Mia Couto escreve mais um grandioso livro. Nessa obra, as memórias são as grandes protagonistas: as memórias da pátria, da cultura, do povo. Através de personagens que buscam o seu caminho e seu lugar no mundo, Couto nos apresenta a cultura Moçambicana, dá-nos uma aula de história e apresenta-nos toda a riqueza que esta terra africana guarda.

Disfarçado de romance, com toque de humor, fantasia e de suspense policial, Mia Couto mostra novamente todo o seu potencial com a escrita. O seu narrar é leve, poético, coloquial, fazendo-nos mergulhar num folclore de uma maneira singular. As muitas metáforas que seu texto geram reflexão não somente sobre a dominação e colonização africana, mas também sobre o presente, sobre a nossa realidade. Se para um bom escritor meia poesia basta, para Couto apenas algumas palavras já podem se tornar um Parnaso inteiro.

“O silêncio é que fabrica as janelas por onde o mundo se transparenta” (p. 26).

Além do vasto conteúdo cultural e histórico, o livro também chama a atenção pelos personagens profundos e psicologicamente complexos. As testemunhas e suspeitos do crime cometido são os idosos residentes no asilo. Então, cada depoimento se torna uma metáfora viva, inclusive com confissões de culpa. A história de capa indivíduo se funde de tal maneira com a história da sociedade que fica impossível dizer onde termina um e começa o outro. Assim, os próprios personagens se tornam poéticos e complexos, alimentando a alma do leitor com uma enxurrada de sentimentalismo e saudosismo.

Couto também sabe utilizar muito bem os elementos “mágicos” do enredo, não se prendendo apenas no “xipoco”. Como todo o enredo possui um forte aspecto mitológico, muito do que acontece do livro é explicado, através dos idosos, pela cultura da região, tornando muito mais vívida a experiência leitora. Isso faz com que a obra se torne mais do que uma homenagem a uma pátria que está prestes a ser assassinada, mas uma manifestação viva desta que está para ser esquecida.

A boa experiência do leitor, que começa com o bom enredo, persiste também na parte física do livro. Essa nova edição providenciada pela Companhia das Letras está simplesmente maravilhosa. As cores da capa são expressivas e marcantes, combinando diretamente com o enredo. Ademais, a obra conta com diagramação confortável e uma revisão perfeita, proporcionando uma excelente leitura.

“Entre mil bichos, só o homem é um escutador de silêncios” (p. 28).

Em suma, A Varanda do Frangipani é mais do que uma obra com um fundo histórico, é poesia, cultura e mitologia em prosa, é uma manifestação artística que valoriza aquilo que, muitas vezes, a estrutura social moderna, principalmente a capitalista, ignora. Este livro é um chamado ao passado, uma chamada às origens, um encontro com o tempo onde os velhos eram ouvidos, as crenças eram respeitadas e os sentimentos eram mais do que emoticons em uma rede social. Esse livro é aquele que, após a leitura, você guarda na estante, mas também no coração.

site: http://www.desbravadordemundos.com.br/2017/01/resenha-varanda-do-frangipani.html
comentários(0)comente



Janaina Edwiges 14/07/2013

" Moçambique: essa imensa varanda sobre o Índico ... "

O cenário deste belo romance é a Moçambique de meados da década de 90. Ex-colônia portuguesa, o país se tornou independente em 1975 e após este ano enfrentou por quase duas décadas uma violenta Guerra Civil.

O romance é narrado por Ermelindo Mucanga, carpinteiro nas obras de restauro da fortaleza São Nicolau, falecido às vésperas da libertação de Moçambique. Ermelindo é um "xipoco" (fantasma) e vive em uma cova junto à árvore do frangipani, que ocupa a varanda da fortaleza, transformada em um asilo.

Certo dia, os governantes decidem fazer de Ermelindo um herói nacional e já corria a noticia de que ele havia morrido em combate contra o ocupante colonial. Mas Ermelindo quer sossego e não pretende se tornar herói. Assim, segue o conselho do seu amigo Pangolim, uma espécie de tamanduá africano, e decide emigrar para o corpo do inspetor de polícia Izidine Naíta. Izidine viera investigar a morte de Vasto Excelêncio, diretor do asilo, assassinado em circunstâncias misteriosas, não se sabe por quem e nem porquê.

O livro é mágico e extremamente poético. Os "velhos" do asilo são a alma de Moçambique. Estão no fim da vida, mas aqui não se trata da morte do corpo física e sim da morte das tradições moçambicanas. Após tantos anos de conflitos o país renasce, mas parece deixar de lado sua essência, os valores, os ensinamentos dos seus ancestrais.

O livro mantem a grafia do português de Moçambique e os termos que podem ser desconhecidos do leitor estão explicados em um glossário, no final do livro. Para mim, a leitura desta obra foi uma excelente oportunidade de conhecer um pouquinho mais de Moçambique, através do olhar poético e instigante de Mia Couto.
comentários(0)comente



Fábio 15/07/2014

A Varanda do Frangipani e os personagens do silêncio*
Mesmo não sendo um livro tão recente, este romance de Mia Couto, publicado em 1996, merece nossa atenção. Afinal, a obra de arte (no caso, literária) não tem idade ou validade; ela empreende o arrebatamento de quem se disponibiliza a recebê-la sem se ater à cronologia de uma dada época, causando espanto e incitando belos e fundamentais momentos de questionamento. Obviamente, uma obra de fato não se restringe ao elogio acadêmico ou ao sucesso comercial, nem se detém num aglomerado de palavras vazias, fúteis, de simples entretenimento; é aquela que possibilita a abertura ao pensar, que convoca para a tensão de caminhar rumo ao inalcançável, fazendo-nos lembrar de nossa perene condição de habitantes da liminaridade entre vida e morte, ser e existir.

Esse romance se compõe de uma narrativa personativa por mostrar o que cada personagem sente e reflete no decorrer de suas ações. O narrador não é aquele constituinte figurativo que meramente se encarrega de contar a história, é uma faceta múltipla estendida pela trama ao refletir e confidenciar aquilo que experienciou na cisão personativa dos vários entes narratológicos.

Em especial, temos Ermelindo Mucanga (o xipoco): o personagem que nos enviesará pelos entremeios de um mosaico imagético, de imagens-questões que nos farão repensar o comum do cotidiano e a semântica irregular das palavras desencaixadas da afirmação lexicográfica. Por seu trajeto intra-humano, os demais se manifestam, isto é, enquanto instalado no corpo do policial Izidine Naíta, sua narrativa é decorrente do que vê enquanto o “polícia” segue com sua missão de desvendar o assassinato de Vasto Excelêncio,diretor do asilo no qual a trama transcorre.

O modo como o enredo se desenvolve desdiz a configuração tradicional de uma narrativa se apresentar. Quando nos detemos na leitura do romance A Varanda do Frangipani, enclausuramo-nos na abertura de um texto que não se conserva na grafia de impressões narrativas. A mesma se dá complexamente ao ser revelada pela ótica do fantasma – o Ermelindo Mucanga –, figurando tanto como personagem quanto como narrador (que, de certa forma, servirá como nó da rede dialógica presente), como pela fala dos outros personagens habitantes desta “varanda”. Podemos depreender, então, que temos uma diversidade de fontes narrativas, uma vez que os demais personagens traçarão os acontecimentos conforme seu ponto de vista.

Mergulhado na densidade dos acontecimentos e enredado nas fabulações dos personagens, o inspetor se envolve completamente na complexidade que compõe cada um deles. Nesse percurso, percebe-se intruso de si mesmo devido ao afastamento da tradição de seu povo. Izidine é um negro em desraização que conhece o novo mundo que se instaura, por isso, dotado da ambivalência entre o passado tradicional (que está sendo enterrado com os idosos) e o modo de vida imposto pela cidade. Diante de tal situação, consegue ganhar a confiança dos idosos, como vemos no capítulo intitulado “A revelação”, no qual a trama manifesta sua radicalidade mito-histórica ao confluir acontecimentos historiográficos embebidos do entusiasmo mitopoético. Nesse momento da narrativa, o inspetor se vê deitado no chão, em meio a um ritual em que personagens como Nãozinha – mulher que se dilui em água todas as noites, a feiticeira habitante do entre-vivos-e-mortos – lhe revelam a própria morte e quem o matará.

Da tríade varanda, frangipani e mar brotaram os sonhos de uns esquecidos que tentavam resguardar um pouco do que ainda restava de uma terra sem guerra. Esse conjunto de imagens transborda o horizonte de sonhos no qual um pouco da história de libertação moçambicana, em especial o pós-guerra, se poetifica no entrelaçamento de vidas que cheiram a terra e têm o mar como passagem ao infinito. A varanda é o eixo de articulação entre o que se passara no conflito colonial e o que se tinha como expectativa de um porvir, isto é, se “por aquele terraço escoaram escravos, marfins e panos” (p. 13), naquele trampolim também os personagens se puseram a vislumbrar a paz acalentada no azul do mar.

A varanda é onde a terra e o tempo, o histórico e o poético se sacralizam num entre-vida-e-morte. Essa liminaridade se dá na frangipaneira por ser a via de comunicação entre vivos e mortos. Suas raízes estão fincadas no mistério da terra enquanto seus galhos ganham a infinitude do céu. Suas flores são dádivas divinais de reconforto aos vivos: “A meu lado estavam brancas flores do frangipani. E adormeci ao consolo daquele perfume” (p. 138); e, retomando o que já fora mencionado, é reforçado o símbolo da circularidade entre vida e morte: “Então, desci do meu corpo, toquei a cinza e ela se converteu em pétala” (p. 151). O asilo é o recôndito memorial, o último resquício dos “antigamentes”. Nesse lugar, a história se desistoriografa, é um mundo inaugurante de pessoas-personagens que se desmascaram num esparramar histórico-mítico. Suas vozes são suas crenças, e suas crenças, ao contrário da fuga interpretada superficialmente pela leitura recolhedora de fatos, são a imersão na verdade naquilo que essencialmente se apresenta: a memória da tradição, de uma tradição obliterada pela guerra, encharcada de sangue inocente e destroços humanos:

A guerra cria um outro ciclo no tempo. Já não são os anos, as estações que marcam nossas vidas. Já não são as colheitas, as fomes, as inundações. A guerra instala o ciclo do sangue. Passamos a dizer ‘antes da guerra, depois da guerra’. A guerra engole os mortos e devora os sobreviventes (p. 127).

É nessa realidade onírico-presentificada que a trama do romance de Mia Couto se apresenta. Ao mesmo tempo que nos deparamos com relatos histórico-historiográficos, estes se revelam numa simbiose mítico-históricas. É a tradição, a voz dos antigamentes na figura dos idosos vivendo não como uma reminiscência que se deflagra num súbito memorial, mas elevando radicalmente o sentido mnemônico como a própria acontecência do acontecível, como tempo silencioso de um nada não niilista, e sim proveniente. A memória é, nesse sentido, o mito em pleno vigor de passado, presente e futuro num só instante. E este é o instante de união, de inaugurabilidade da verdade na fala e no gesto de cada personagem. Podemos perceber a dimensão do que dissemos agora no seguinte trecho:

Viram o helicóptero?, perguntou Izidine, excitado.
Qual helicóptero?
A velha feiticeira soltava as gargalhadas. Aquilo que o polícia tomava por máquina voadora era o wamulambo, a cobra das tempestades (p. 150).

Diante desse fragmento, defrontamo-nos com a dualidade simbiótica da visão modernizada de Izidine e do olhar místico da feiticeira ao reconhecer no helicóptero a cobra das tempestades primordiais – o wamulambo. Esse movimento duplo não dicotômico percorre toda a narrativa, desfazendo a fácil categorização do romance num simples estilo literário.

A tensão instaurada pela guerra pode ser entendida no ecoar do “antigamente” nos idosos, sendo eles a própria essência dessa tradição, assim como no “depois da guerra” manifestado em Izidine Naíta, o branco de cor negra que carrega a deveniência da modernidade no pós-guerra moçambicano. Nesse atravessamento histórico, o respeito aos anciãos se esvai mediante a perda da consciência de um passado em que eles tinham a última palavra nas decisões e diante do apressamento temporal de um novo cotidiano: o das máquinas e da modernidade.

A antiga fortaleza colonial é onde o passado se guarda. Ela detém os restos não só de um país que se modifica, mas de um povo que está na iminência de perder sua genealogia mito-histórica. Fora do asilo, o que temos é a cidade em caos, devastada pela guerra e pelo esquecimento do antigamente. Tal situação é clarificada nas palavras do personagem Salufo Tuco aos idosos, quando foi vitorioso numa tentativa de fuga mas retornou ao asilo-exílio, atropelado pela decepção da desimportância que os jovens e toda sociedade moderna atribuíam aos anciãos, além de perceber que o asilo figurava como último sopro de um passado em que se prestava respeito à tradição:

vocês [os velhos] são a casca da laranja onde já não há nem sobra de fruta. Os donos da nossa terra já espremeram tudo. Agora, estão espremendo a casca para ver se ainda sai sumo (p. 112, colchetes nossos).

Na conjugação asilo-cidade, percebemos traços da dimensão política pela qual passa Moçambique, quando Marta Gimo menciona a tentativa de um golpe de Estado:

Você nunca vai entender. O que se está a passar aqui é um golpe de Estado.
Um golpe de Estado?
Sim, é isso que o deveria preocupar, senhor polícia (p. 102).

Porém, como já fora dito, este romance não é uma narrativa política ou policial. É um dar-se textual-poético-mítico em que as imagens presentes abundam em significância, conforme a interpretação do leitor que dialoga com a excessividade do entorno infinito-inaugural da poíesis como essência do agir. Portanto, da vida em acontecimento, do mito como voz do sagrado e da memória em entre-realidades do real.

Por fim, percebemos o contexto político de Moçambique, que vive um tortuoso pós-guerra, na visão dos entes narratológicos absorvidos na realização concreta da fala de um passado em decadência. O vigor mítico de dizer o presente se revela na acontecência da tradição figurando personagens do silêncio.

site: *Obs.: Essa resenha foi originalmente publicada no site Educação Pública (http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/livros/0065.html)
comentários(0)comente



driesvansteen 21/04/2024

fofo
o começo é um estrondo: uma ideia incrível, um mega disparador de história. y a linguagem ABSURDA forra o caminho sem causar tropeço nenhum. totalmente cria do guimarães rosa; juro que deve ter escrito com uma mão y lido guimarães com a outra. valeu demais. mas digo três y meia, porque, apesar de lindo, não mudou a vida de ninguém. kkkkk te amo mia té a próxima
comentários(0)comente



Caio_Rafael 19/01/2022

Mia Couto e a Varanda do Frangipani
"Me deito mais antigo que a terra. Daqui em diante, vou dormir mais quieto que a morte".

A Varanda do Frangipani é o terceiro livro que leio de Mia Couto, mesmo autor do incrível livro Terra Sonâmbula (Recomendo a leitura).
Assim como os outros livros, A Varanda do Frangipani tem a escrita maravilhosa e poética do Mia Couto, o que só torna essa história ainda mais fantástica.

A história acompanha o inspetor Izidine investigando o assassinato de um diretor de um asilo. Os capítulos se alternam entre a investigação e os relatos das pessoas que vivem no asilo.
Envolvendo muito a cultura e os acontecimentos de Moçambique, misturando elementos fantásticos na trama, A Varanda do Frangipani proporciona bons momentos e ensinamentos, permitindo "fugir" do nosso dia-a-dia e conhecer um pouco sobre outras culturas e os acontecimentos por qual Moçambique passou.

Novamente a escrita de Mia Couto me encantou e é sempre bom ler algo desse incrível escritor.
comentários(0)comente



30 encontrados | exibindo 1 a 16
1 | 2


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR