Camila Barros 30/05/2014
O Barroco em Boca do Inferno
Boca do Inferno é uma obra da autora brasileira Ana Miranda e se trata de um romance histórico brasileiro que apresenta uma narrativa intensa, retratando de forma realista, apesar de esta ser uma narrativa ficcional, a realidade da época do Brasil colônia cujo povo sofria constantemente com a miséria, com os governantes déspotas, corruptos e tiranos nas províncias, além da falta de ação e interesse do príncipe regente de intervir nas mazelas que assolavam a colônia.
A narrativa se passa no estado da Bahia, no período colonial do Brasil, e gira em torno do assassinato do alcaide-mor, braço direito do governador. O personagem principal é Gregório de Matos que, por ser amigo da família Ravasco, acaba envolvido indiretamente no assassinato do alcaide. O poeta vê seus amigos, que participaram do homicídio, perseguidos pelo cruel e inescrupuloso Braço de Prata, alcunha atribuída ao governador por este possuir um braço artificial de prata. O assassinato é movido por intrigas e ódio entre duas famílias: os Ravasco e os Menezes. Duas famílias nobres que são inimigas e lutam entre si em nome da honra e do poder. O estopim do conflito inicia quando Gonçalo Ravasco, amigo do poeta Gregório, decidido a atingir a família Menezes, encabeça e trama o assassinato do alcaide Francisco Teles de Menezes. Após o assassinato, o governador Antônio de Souza de Menezes, o Braço de Prata, ordena a prisão dos envolvidos e de todos os possíveis aliados do inimigo. Desta forma, se inicia uma perseguição violenta onde o poeta Gregório de Matos é envolvido.
Difícil ler Boca do Inferno de forma imparcial e não escolher um lado: torcer pelo lado da família Ravasco ou da família dos Menezes. Os Menezes são uma família inescrupulosa e envolvida em questões e decisões ilícitas que favorecem a si e a seus aliados. Os Ravasco, referentes ao grupo dos mocinhos no romance, são uma família influente e que constantemente sofrem ataques dos Menezes nas questões hierárquicas e econômicas. Porém, os Ravasco também possuem sua dose de intolerância e de favorecimento a importantes e influentes amigos e aliados, fato é que Gonçalo Ravasco trama um homicídio e sua família procura de todas as formas livrá-lo de punições e sentenças que possam lhe custar a vida.
Assim, a autora Ana Miranda descreve bem a época final seiscentista no Brasil, período em que predominava o estilo Barroco, marcada por lutas de poder entre os nobres e as rixas entre as famílias influentes da época, além de retratar personagens como o poeta Gregório de Matos, conhecido por seus poemas satíricos e críticos, e o padre Antônio Vieira, que na trama pertence à família Ravasco e possui papel de destaque, retratado com muita veracidade e fidelidade às suas características históricas de exemplar escritor de sermões e de seu constante envolvimento no campo da política. O estilo barroco das obras e da vida destes dois personagens é retratado várias vezes na obra, onde se percebe o complexo dualismo Céu x Inferno no pensamento do homem que ora deseja o céu, mas encontra-se preso a terra, ora põe em dúvida a tradição religiosa, mas não consegue desvencilhar-se dela.
Outra questão perceptível são as características principais do Barroco apresentadas, que são o cultismo e o conceptismo. Para isso, como dito anteriormente, Miranda utiliza estes dois grandes nomes da literatura barroca: Gregório de Matos e Antônio Vieira. No livro, estes personagens também, da mesma forma, incorporam tais características, onde o primeiro apresenta os traços inegáveis do cultismo em sua poesia, marcada por jogos de palavras; e o segundo apresenta em sua prosa os traços do conceptismo, marcado pelos jogos de ideias. Desta forma, fica claro que os dois apresentam formas diferentes entre si de expressarem suas críticas, ideias e opiniões: Gregório de Matos utiliza-se da sua poesia, mais satírica, voltada para o povo e com linguagem mais coloquial, e Antônio Vieira, através de seus sermões, critica a sociedade por meio de parábolas e metáforas de cunho bíblico, apresentando uma linguagem mais rebuscada.
A autora também se utiliza de alusões a outras obras literárias consagradas, como é o caso do trecho onde Vieira relembra a obra Os Lusíadas: Para isso foi que abrimos os mares nunca dantes navegados? [...] Para isso descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? [...] E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhamos as hajamos de ver assim? (p. 50). O personagem procura mostrar que o povo português, tão bravo, corajoso e valente descrito por Camões, havia se tornado um povo mesquinho, ganancioso, arrogante e com sede de poder e sangue. Tal desabafo do personagem é retratado na obra, pois Vieira não aprovava as ações de Gonçalo Ravasco, seu sobrinho.
Por último, não se pode deixar de destacar o título Boca do Inferno adotado na obra de Ana Miranda. O título é uma referência explícita à alcunha verídica atribuída ao poeta baiano Gregório de Matos e Guerra. Em certos trechos da obra, o apelido do poeta é citado, permitindo fazer uma ligação entre o título da obra à alcunha do poeta, visto que este é a personagem principal da narrativa. Como exemplo, em certo trecho há a referência dada pelo governador Braço de Prata sobre Gregório de Matos: Mas com uma certa nobreza de linguagem, que não rasteja à boca do inferno como a desse poeta baiano, não é essa a sua alcunha? O Boca do Inferno? [...] (p. 242).
Em outra passagem posterior, também é aludida a alcunha do poeta: [...] Podia ter-se dedicado à lírica ou à transcendência espiritual, como Vieira, mas abdicara da graça da manhã ensolarada e dos mistérios suaves, deixava-se vagar pela esfera mais funda e por isso o chamavam Boca do Inferno. Mas boca do inferno não era ele. Era a cidade. Era a colônia (p. 250). Sabe-se que o poeta recebeu o apelido Boca do Inferno por suas inúmeras poesias críticas e/ou satíricas, ora ofensivas ora de referência erótica, sobre questões como a Igreja, o clero, a religião, a política e as classes sociais. Desta forma, Miranda apresenta Gregório de Matos de forma não diferente do qual é apresentado na história, proporcionando mais realidade à obra.
Todas estas características, além dessa mistura de ficção e história, acabam por conferir ao livro uma experiência de leitura que beira ao realismo e que proporcionam ao leitor uma breve visão do período do Barroco brasileiro e da vida e história de seus ilustres representantes que marcaram a Literatura Brasileira, acentuando, desta forma, este período tão conturbado e contraditório que influenciou o pensamento do ser humano e suas obras.