DIRCE 30/08/2014
Nada é o que parece. Tudo é o que parece
As primeiras páginas do romance Venenos de Deus, Remédios do Diabo me sugeriam uma leitura muito divertida, não só pelos diálogos - eu que fico um tanto quanto desmotivada, quando me deparo com uma escrita na qual prevalecem os travessões, me deliciava com os diálogos ali existentes-,como também pela brincadeira feita com os nomes das personagens.Abro aqui um parêntese para dizer que já havia me chamado a atenção como Mia Couto nomeia as personagens dos seus livros- a criação dos nomes retratam o que elas carregam na alma, mas, neste romance, Mia Couto brinca" com a ocupação das personagens em suas casas (não dá para dizer lares) ou na comunidade em que vivem na fictícia Vila Cacimba, localizada no coração da África-, mas por trás dessa brincadeira percebe-se a ironia como no nome da Dona Esposinha que retrata a subserviência da mulher, do Suacelência- o poder da autoridade mor, para não dizer a única do lugarejo- e no dos Sozinhos Bartolomeu,Dona Munda e Deolindasozinhos por serem fruto da aculturação?
Antes de prosseguir no meu comentário, deixo meu pedido de desculpa a Mia Couto: peço desculpa pela visão simplista que eu tive inicialmente e que me levou ao riso. Não precisei de muitas páginas para entender que ler Venenos de Deus, Remédios do Diabo é se embrenhar em um texto sério que trata questões inerentes à identidade, à condição da mulher, a AIDS (que assola grande parte dos países Africano),ao preconceito e ao incesto. Para abordagem desses temas, Mia Couto se inspira no sentimento que faz com que o homem seja capaz até a se expatriar o Amor.
O romance se abre com uma citação do Mário Quintana: A imaginação é memória que enlouqueceu,e é dele,do Mário Quintana, o verso que me veio à mente para relatar a atitude do médico Sidónio Rosa:AMAR É MUDAR A ALMA DE CASA. Sidónio deixa Portugal e vai ao encontro da sua alma, haja vista que ela encontrou nova moradia -ela se mudou para Deolinda, quando os dois jovens se conheceram em Lisboa.
Enquanto espera por Deolinda, Sidónio cuida dos doentes da Vila Cacimba, dentre eles, do esvaído - da saúde e da vida Bartolomeu, o ex-mecânico, o ex-sonhador e o ex-habitante do navio Infante D. Henrique até o fim do Regime Colonial. E é Bartolomeu que começa a delinear uma trama que, em dado momento, começa dar reviravoltas e que me deixou cada vez mais mais confusa. Deparei-me com verdades contadas ao "médico por Bartolomeu, por Dona Munda e por Suacelência - diferentes "verdades" se faz ouvir pelas vozes dessas personagens.
Mas as confusões não se limitam as tramas, as personagens também nos confundem: afinal, elas se amam ou se odeiam? E que dizer sobre o significado do título: Venenos de Deus, Remédios do Diabo? Em minha opinião, a VERDADE é o veneno e a MENTIRA, o remédio. Mentira - o remédio que as personagens lançam mão para não se deixarem sucumbir diante da atroz realidade. Cheguei a essa conclusão porque a MENTIRA permeia toda a trama, e por ter sido me ensinado, desde a minha tenra idade, que MENTIR É PECADO, e que sendo pecado é coisa do diabo.
Quem já leu algum romance de Mia Couto sabe que o surrealismo neles se faz presente, e este não foge à regra. No final me pareceu que Nada é o que parece e que Tudo é que o que parece.Impressão reforçada pela diabólica Dona Munda (o que é dado perceber logo na primeira página - por meio do diálogo entre ela e o doutor: (...)Diz que se ele é diabético, eu sou diabólica), quando ela se oferece e oferece ao (a esta altura ao também confuso, ou não) Sidónio Rosa, pétalas da flor conhecida como beijo- da- mulata a flor do esquecimento - que contém uma espécie de alucinógeno e faz com que ele a mastigue. E é assim: sob o efeito desse alucinógeno, quando tudo parece ser tragado por um nevoeiro, que Sidónio consegue visualizar sua amada. O despertar de Sidónio parece sinalizar que sua alma voltou à sua antiga moradia.
Venenos de Deus, Remédios do Diabo é uma obra de apenas 188 páginas que condensado (há espaços em branco entre um capítulo e outro) teria bem menos, mas de valor inestimável pela profundidade existente em cada diálogo e pelas inúmeras leituras possíveis de se fazer.
AMEI. Não poderia ser diferente em se tratando de uma obra de um escritor inconfundível como Mia Couto. Mais um que vai para os meus favoritos.