Lauro Edison 20/11/2010
A Grande História da Evolução - Na trilha de nossos ancestrais
Original:
http://www.suasticazul.hbe.com.br/realidade/grandehistevo.html
The Ancestor's Tale é um livro grandioso, no melhor dos sentidos. Sendo de 2004, demorou longos cinco anos para ser publicado aqui no Brasil. Talvez a Companhia das Letras tenha esperado a oficialização da Reforma Ortográfica, a qual esta tradução já adere. O seu rebatismo, em português, como A Grande História da Evolução caiu muito bem, a meu ver - apesar de, em geral, eu estar de acordo com o próprio autor sobre ser péssima a mania das editoras de renomear as obras publicadas.
Mas o original "O Conto do Ancestral", nesse caso, não rivaliza com termos a palavra EVOLUÇÃO escrita em letras garrafais na capa. Isto chamará a atenção do devido público-alvo. Neste sentido, também é bom que não tenham cometido a bobagem de legendar algo como "do mesmo autor de Deus, um Delírio", o que foi feito na nova, e fora isso perfeita, edição de O Gene Egoísta. Desta vez, imagino que muitos religiosos que antipatizam com Richard Dawkins poderão ler este livro e, sem aversão prévia, apreciá-lo sem sequer ligar os pontos. E melhor pra eles!
O livro basicamente não toca na questão de Deus ou da fé, e é mesmo completamente imperdível. Aliás, é disso que tentarei convencer o leitor. Se houvesse uma amigável enciclopédia sobre "a Vida, o Universo e tudo o mais", A Grande História da Evolução seria a obra ideal para preencher o volume "Vida" e ainda teria inúmeros trechos memoráveis que bem poderia doar aos volumes de "tudo o mais".
Apesar disto alguém poderia pensar que ler sobre 4 bilhões de anos de evolução, pulando de um tipo de ser vivo para o outro, em passos graduais, possa ser a receita ideal para o tédio. E, no entanto, Dawkins tem razão ao dizer mais ou menos: "abra este livro em qualquer página aleatória, e lá estará algo deslumbrante". A verdade é que a vida, ao escrever sua história nas páginas da realidade, parece jamais sofrer de crise criativa. Sempre há algo imperdível acontecendo, seja em que época for que você decida pousar sua máquina do tempo.
Pois bem: apesar de começar sua jornada pelo ponto de vista do ser humano, Dawkins sempre frisa que esta escolha é completamente arbitrária. E que a fez, claro, simplesmente porque somos seres humanos, mas que poderia ter igualmente começado por quaisquer das 10 milhões de espécies vivas hoje. Então, partimos de nossa espécie rumo ao passado e, pelo caminho, vamos encontrando nossos diversos ancestrais - não todos, é claro, mas aqueles que nós temos em comum com as outras espécies do planeta, desde aquele que nos une aos bonobos e chimpanzés até aquele que nos une a todos os seres vivos, o que demora 4 bilhões de anos e é mediado por outros 38 encontros.
Ora, no que se trata da história da vida, o que todos sabem é apenas que nossos ancestrais são primatas, que conviveram com outros predadores mamíferos, por exemplo felinos, e que muito tempo antes o mundo continha dinossauros, e que enquanto isso os oceanos sempre estiveram cheios de todos os tipos de peixes exóticos. E que, muito antes ainda, tudo o que havia eram micróbios.
Pois bem, saber isso é saber muito poucos detalhes sobre uma das mais belas histórias reais que existem. Viver em nossa época e ignorar a aventura da vida, que nos trouxe até aqui é, como costumo dizer, bem pior do que ir ao Egito, passar ao lado das pirâmides, mas olhar sempre para o lado oposto. É um desperdício a ser evitado. E esta é a irrecusável chance: este livro é uma viagem suave e agradável, numa manhã de céu azul, por mais de 3 bilhões de anos de evolução, onde a vida está sempre descobrindo as mais fabulosas soluções para todo tipo de problema, numa marcha ininterrupta que é a razão de estarmos vivos.
Sei que você gosta de seus pais e avós, talvez até dos bisavós, e pode ser que devote sua vida a eles. Mas a verdade é que eles não têm mais mérito na sua existência do que todos os seus outros ancestrais. Então, por favor, é hora de fazer justiça ao seu avô Cro-Magnon. Ou, mais lá atrás, à sua avó hominídea cujos netos incluem tanto você e a humanidade, de um lado, quanto todos os bonobos e chimpanzés do outro. Mas por que parar? Saiba mais sobre os avós que você possui em comum com gorilas, orangotangos, gibões... e com cães, gatos, ursos... e com peixes pulmonados, lampreias, tubarões... e com insetos, vermes, caranguejos... e com plantas, esponjas, bactérias.
Ao longo de todo esse trajeto, o autor abre a cortina para uma série de personagens, isto é, seres de espécies hoje vivas que nos acompanham em nossa jornada rumo ao passado, narrarem seus contos particulares. Não em forma de fábula, na primeira pessoa, mas esperadamente na voz de Dawkins. E todos eles têm algo importante, interessante ou muito curioso a dizer.
Alguns nos ajudam a entender melhor o processo evolutivo. Assim é que o castor, em seu conto, nos mostra como os genes podem ir além do corpo em que estão, contendo instruções até mesmo para a construção de represas. Já o rotífero, um estranho aparentado dos vermes, nos surpreende com o sucesso de sua história assexuada, nos deixando ainda mais confusos sobre como e por que o sexo evoluiu. E, além de tantos outros exemplos imperdíveis, há também o tentilhão, um passarinho das ilhas Galápagos cujas mudanças evolutivas têm sido tão rápidas e evidentes que puderam ser documentadas diretamente por pesquisadores em míseras duas décadas - o que não pode a evolução fazer em centenas de milhões de anos, então?
Outros generosamente nos falam de coisas que podem elucidar o nosso próprio passado evolutivo. E você não esperaria que o piolho, por exemplo, fosse capaz de nos dizer algo de útil. Bem, talvez não seja. Mas a fascinante conjectura de que começamos a usar roupas há 72 mil anos, porque foi essa a época em que o "nosso" parasita piolho-do-corpo divergiu do piolho-da-cabeça - sendo a roupa a razão para que fizesse sentido este começar a viver no já pouco peludo corpo humano - está lá, com alguma chance de ser real.
Você também verá uma coleção de teorias instigantes sobre por que nos tornamos bípedes, ou por que nosso cérebro cresceu tanto, tendo o pavão algo bem familiar a nos dizer. E o verme, desdenhando nosso nojo, nos deixará perplexos com o fato de que, no fundo, somos vermes invertidos e modificados! E, não se podia esperar, o gafanhoto e a salamandra terão algo muito sério a colocar sobre nossos problemas raciais: nossa mania estúpida de separar o que é gradual em classes e categorias falsamente distintas.
Há também contos totalmente inesperados e, para não arriscar torná-los esperados, vou apenas deixar a dúvida no ar: como o avestruz chegou à África? Qual o parente mais próximo do hipopótamo? O que faz certas aves perderem as asas? Como será ter um tato mais poderoso do que a visão de uma águia? Ou por que não evoluem rodas na natureza?
Enfim, são 700 páginas que fazem o País das Maravilhas parecer quase monótono. E isto porque, ao invés de nos sentirmos perdidos, Dawkins nos faz viajar ao passado distante com uma confortável e nítida visão panorâmica das flutuações geográficas e climáticas do planeta. É vertiginoso acompanhar as divergências de espécie que foram causadas pela divergência dos continentes, há 150 milhões de anos, e ver como isto deu no mundo de hoje!
O final é um gran finale. Dawkins mais uma vez alcança a maestria que já conseguira ao tratar da questão da origem da vida em O Gene Egoísta e O Relojoeiro Cego, e agora nos apresenta mais algumas alternativas promissoras - com direito a uma sutil referência ao inferno na página 666, para botar os criacionistas em seu devido lugar (ok, brincadeira: isso foi só uma bizarra coincidência da edição brasileira!).
Ao contrário da maioria dos "profissionais do saber", que hoje buscam conhecimento do mesmo modo que um advogado busca clientes, isto é, como um meio para obter dinheiro e sucesso profissional, Dawkins é claramente o tipo apaixonado pela verdade. É por ser ávido por compartilhar o que sabe, em vez de tender a tornar difícil que os outros alcancem seu nível (quem quer ajudar a "concorrência"?), que seus livros não são "didáticos", isto é, daqueles que tratam a curiosidade como uma espécie de falta de seriedade. Em lugar de nos descrever "fatos que devem ser sabidos", ele nos leva a entender como e por que as coisas acontecem e, mais ainda, como é que descobrimos isso.
Por isso o vemos explicar, em detalhe, os diversos métodos de datação do passado, ou o modo como, através do cruzamento de informações genéticas e fósseis, deduzimos de modo seguro as linhas de parentesco animal; ou, ainda, quais complicações e discordâncias existem entre os especialistas. E onde há dúvida, Dawkins não abandona o tema e nem finge que sabemos algo, mas nos deixa tão informados quanto possível sobre a situação, e sobre o que pode ou não ser confirmado ou refutado no futuro.
Enfim, ele nos conduz em uma viagem completa.
Como não bastasse, você ainda terá o prazer de vê-lo - ele que sempre teve fama de ser ultradarwinista - se aventurar na defesa de ideias ousadas, contrárias ao atual status quo científico, ao abordar as noções de progresso na evolução e da evolução da própria "evolvabilidade" (antigamente se falava "evolutibilidade", que será que houve?), mostrando que, como todo bom cientista, possui mente aberta - apenas não é o tipo de mente aberta insana que seus críticos às vezes também insanos desejariam.
por Lauro Edison
8 de agosto de 2009