tguedes2 19/06/2022
Sobre o desejo de repetição e a felicidade
Apesar de o argumento do Mito do Eterno Retorno não apresentar solidez científica, o papel dessa concepção na filosofia de Nietszche se apresenta como uma possibilidade. Toda a construção do eterno retorno nietzscheniano não passa de uma “intuição de artista” e o filósofo propõe pensarmos de que modo reagiríamos se a concepção fosse verdadeira. Acredito que aqui está o ponto crucial do romance de Milan Kundera "A Insustentável Leveza do Ser".
O Eterno Retorno apresenta a ideia de que há uma quantidade finita de matéria/energia no universo, logo, há um número finito de arranjos que podem ser feitos. O tempo é infinito, tanto para frente quanto para trás, de modo que a dinamicidade do universo e sua sucessão incontável de arranjos, que são finitos, devem se repetir de vez em quando, separados por vastos interstícios temporais. Como consequência, iremos viver as mesmas situações da vida, de novo e de novo, exatamente como agora.
Conforme dito, o eterno retorno não se apresenta como um objeto de investigação da organização do universo, pelo contrário, o eterno retorno é uma idealização que se volta para si mesmo, trazendo consigo a pergunta: quem há de querer que tudo retorne? Ou “O que é querer que tudo retorne?". A primeira vista ele supõe que a primeira reação seria um completo desespero, frente a condição humana nefasta, rodeada de frustrações e sofrimentos. É um pensamento que pesa, é sufocante, abissal, mas supondo que alguém abrace a ideia com felicidade, isso seria uma atitude grandiosa de apreciação à vida, a máxima de sua afirmação.
Ressalto que o livro abre margem a diversas interpretações e reflexões. O que escrevo aqui nada mais são que as minhas impressões, sem pretensão de verdade absoluta sobre a obra ou sobre o que o autor pretendeu passar.
Terminando o romance consigo vislumbrar o entrelaçamento do Mito do Eterno Retorno de Nietsche com a dicotomia da leveza e do peso. Ao abrir o romance Kundera faz a reflexão inicial acerca da importância de uma vida que é vivida apenas uma vez. A proposta de que a vida individual se apresenta em círculos e que se repete infinitamente, torna-a um fardo, um peso. Nas palavras de Kundera, pelo eterno retorno estaríamos "pregados na eternidade como Cristo na cruz". De outro modo, se a vida se apresenta em linha reta, sem retorno, sem repetição, sendo vivida uma única vez, torna-se leve, efêmera. Kundera reflete que a ideia do eterno retorno, portanto, apresenta a vida sem a perspectiva atenuante da fugacidade. Essa circunstância atenuante, fora do eterno retorno, impede a pronúncia de um veredito: impede o peso da vida, a reflexão profunda; impede a certeza da felicidade e da realização plena. Nesse contexto, o indivíduo é um acontecimento casual, passageiro, fadado ao esquecimento. A leveza, metáfora utilizada para ilustrar toda efemeridade da existência humana, torna a existência uma experiência angustiante. De modo oposto, o peso de uma vida que se repete leva o indíviduo a busca da realização plena. Esse é o ponto do mito do eterno retorno: o que faríamos se a vida se repetisse? Viveríamos uma exuberância de experiências ou faríamos dela um eterno desperdício? A ideia de peso convida o ser humano ao desfrute de uma vida de plenitude.
Os personagens de Kundera vivem nesse estado de leveza, intocados pela vida cíclica e repetível. Situados na Tchecoslováquia, atualmente República Tcheca, durante e a partir dos acontecimentos da Primavera de Praga (1968) e da invasão e dominação russa, Tomas, Tereza, Sabina e Franz vivem vidas insatisfeitas. Será que tendo feito a reflexão do retorno Tereza teria continuado em um relacionamento com um libertino? Será que Tomas continuaria em uma relação que não consegue sustentar em razão de seu estilo de vida polígamo? Será que Sabina continuaria promovendo "traições", sem se deixar ficar em nenhum lugar? Será que Franz teria se mantido tanto tempo em um casamento infeliz apenas por convenção? A escolha da leveza era realmente mais positiva?
Além da fugacidade da vida pessoal de cada personagem, Kundera apresenta a própria história humana como efêmera. O mundo da manutenção poder e da opressão, cenário que permeia todo romance, tolhe a busca pela satisfação plena pessoal, pois limita a ação, a reflexão e a crítica. Limita tanto que os personagens são obrigados a fugir, a tentar escapar, nunca conseguindo encontrar um ponto de satisfação. Conforme trata o narrador: "O tempo humano não gira em círculos, mas avança em linha reta. É por isso que o homem não pode ser feliz, pois a felicidade é o desejo de repetição". Os personagens não conseguem encontrar tal desejo de repetição, pois vivem numa atmosfera de medo e perseguição.
Esse livro intercala entre o enredo desses quatro personagens e as reflexões de um narrador que pondera sobre a vida, o amor, a sexualidade, a religião e as relações. Realmente imperdível!