Gabriel 24/12/2023
O pesar da complexidade humana.
Esse é o primeiro romance do Kundera que eu leio e, apesar do título, pelo amor de Deus não o confundam com um livro de autoajuda! Não tem nada disso!
(Digo assim pois alguém me perguntou nesse sentido, enquanto eu compartilhava a minha leitura).
É um romance (não tão romântico) muito bem construído, ouso dizer que esse foi um dos livros que os personagens foram mais bem construídos que eu li até hoje. São 4 protagonistas desenvolvidos de tal forma que o próprio autor, dentro do livro, os deixa fluir e crescer – abraçando o peso de cada contradição e leveza de cada desejo que vem deles.
Se fosse para inserir o livro em caixinhas, diria que é um romance filosófico, com um fundo político, e algumas pitadas de romance.
E é um romance filosófico, fictício, para adultos, mas sem ser pedante ou extremamente didático. A leitura te convida a refletir de forma filosófica em diferentes pautas, especialmente as contradições do ‘’eu’’.
De forma sutil, você acompanha o desconforto de diferentes adultos em decidir, e logo, por consequência, o desconforto de existir como pessoa, e suas diferentes responsabilidades diante da vida.
Assim como o desconforto de habitar a própria história, sendo essa vida confortável ou não (em senso comum).
Leve ou pesada, cada um dos personagens da história veste a sua complexidade perfeitamente.
Tereza é uma síntese clara da dualidade corpo e alma.
Uma complexa personagem, marcada pela própria bagagem pessoal, que tem vergonha da própria nudez ao mesmo tempo que flerta com o interesse nesta - e na do outro (outros).
Tem aspiração por adorar, depender e se manter ao namorado (Tomás), num profundo medo de ser abandonada, ao mesmo tempo que se sente tão feliz em uma carreira que a leva a abandona-lo – num gesto que, pra ela, é um presente, já que seu amor representa controle (o qual ela não tem sobre ele e logo é uma das suas principais fontes de sofrimento).
Tomás é igualmente complexo, uma máxima do homem que quer ter tudo sem lidar com o peso de ter tudo (e que contraditoriamente também pensa em largar tudo). Ele se vê como uma pessoa não monogâmica (ainda que isso não seja colocado exatamente nesses termos, mesmo sendo isso), mas se vê inclinado a persistir e ser sistematicamente infiel em uma relação monogâmica com Tereza. Muito contraditório, você vê que Tomás também ama a esposa a ponto, inclusive, de fazer loucuras de amor pela pretendente ao qual é desonesto.
Já Sabina (que também é uma das amantes de Tomás) é uma excêntrica artista de pensamento tão livre que não consegue se manter firme por um significativo período de tempo em qualquer vertente, seja artística, política ou de pensamento pessoal.
Uma personagem tão impar quanto os outros, também marcada pela própria bagagem, se mostra alguém constantemente subversiva, mas que deseja com intensidade o fim das próprias subversões sequenciais - sonha com a vida calma que é incapaz de ter, enquanto vive o próprio caos de se reinventar, o tempo todo.
Já Franz, amante de Sabina, é um acadêmico dócil e metódico que admira profundamente causas, ideias e eventos críticos que nunca viveu - como a repressão política, pelo conforto da sua vida, e mantém seu caso com Sabina como a primeira vez que apresenta um comportamento ‘’desviante’’ em toda sua vida "certinha".
O romance com Sabina é para ele a única válvula de escape da própria vida pacata - que ele mesmo se inseriu, auxiliado pela esposa que ameaça constantemente se M4t7r se ele a deixar.
Para além destas questões, o livro aborda diferentes sequencias de reflexões históricas secundarias a marcos políticos temporais – a história se passa Praga, atual República Tcheca, e é situada pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando Praga era comandada pela Rússia Socialista de Stalin.
Nesse contexto, a história se situa entre diferentes países sob o domínio da chamada União Soviética de Stalin - em regime totalitário, com um desenrolar em que uma vertente contra o totalitarismo se insurge de Praga contra a União Soviética – sendo essa vertente anti totalitária comandada por Alexander Dubček.
Apesar de ser um livro de ficção, sua contextualização história é real. O próprio autor, Kundera, publica esse livro em exilio – após fugir de Praga vítima da repressão. Observamos, portanto, diversas passagens em que os personagens se mostram a favor, contra ou indiferentes ao cenário político, ainda que todos (em unanimidade) sejam deformados de diversas formas por esse.
Para além dos cenários de Guerra propriamente ditos, cada um deles é afetado por conflitos pessoais intensos.
Tereza viveu guerras em casa, enquanto crescia, e isso a marcou profundamente – a ponto de carregar as marcas disso na vida adulta.
Tomás vive uma guerra com as contradições que vem das suas decisões pessoais.
Franz não viveu guerra alguma, e justamente esse é seu problema, é um mimado que admira sair da zona de conforto.
E Sabina, apesar de em constante combate, foge de qualquer guerra por não querer ser fiel a qualquer causa, nem a ninguém e nem a si.
Do ponto de vista literário, Kundera manda muito bem. O livro aborda bastante erotismo, mas não ao ponto de ser desconfortável, não é a pauta principal, e o autor pode até vez ou outra divagar demais em um assunto, mas tudo é escrito de forma primorosa
Particularmente foi um dos melhores livros que li esse ano, me fez refletir sobre muitas coisas, vou levar pro coração – especialmente a Karenin, a cachorra de um dos casais protagonistas. Recomendo muito a leitura.