Aline T.K.M. | @aline_tkm 14/02/2015Essencial para a vida todaSabe aquele sentimento único que se experimenta ao deparar-se com o – ou um dos – livro da sua vida? Pois foi este o carimbo que A Insustentável Leveza do Ser, clássico contemporâneo do tcheco Milan Kundera, deixou em mim.
Praga, fim da década de 60; a Primavera, ocupação soviética, regime comunista, opressão. Os holofotes se revezam entre quatro protagonistas: Tomas, Tereza, Sabina e Franz. O libertino Tomas e a doce Tereza dividem o teto e a vida, e se apoiam em seu amor. Sabina, amiga e amante de Tomas, é dona de si, fugaz e muito sexual. Já Franz é idealista e sonhador. Através das décadas, acompanhamos os relacionamentos, as frustrações e o destino dessas quatro pessoas, em um retrato emoldurado pelo caráter passageiro da vida.
Durante as pouco mais de trezentas páginas do livro, Milan Kundera nos leva numa jornada filosófica pela natureza do ser humano, dos relacionamentos, da vida. Análise com muito de psicológica, que tem como apoio a teoria do eterno retorno de Nietzsche e as ideias de Parmênides quanto à oposição entre o pesado e o leve.
Se por um lado o peso comprime, ele também torna tudo mais real, mais vivo e intenso, dá sentido e vínculos ao ser humano. Já a sua ausência, a leveza – ou a falta de um fardo –, faz voar e distancia do real, conferindo liberdade e despreocupação, mas trazendo também a ausência de laços e compromisso, a insignificância. Se considerarmos então o eterno retorno, retiramos a fugacidade das coisas; a vida passa a ser uma série de repetições, rotinas, o que torna tudo carregado de responsabilidade, de um peso impossível de ser ignorado ou levianamente perdoado. A questão que o autor nos traz é justamente se o peso seria verdadeiramente cruel e a leveza, bela e sempre desejável.
Ao dissecar os personagens, Milan Kundera descortina o ser humano em sua essência, seus desejos e motivações. Com metáforas e uma narrativa suficientemente densa, o autor nos carrega para as profundezas do amor, da sociedade e mesmo do mundo; fala de carências e solidão, das diferentes motivações da pessoa adúltera e do tipo de olhar que cada ser humano busca e necessita. Fala de candura e da entrega incondicional, livre de qualquer peso, personificadas na pele da cachorrinha Karenin.
E, ainda, fala da dualidade existente no âmago de cada um de nós. Exemplo disso é a relação de Tomas e Tereza. Ele não consegue se privar de seus desejos, tampouco pode viver sem Tereza (ainda que por vezes a considere um peso em sua vida, além de expressar pena da moça). Ela – traumatizada pela mãe e que tem uma relação peculiar com o próprio corpo e os espelhos – é ciente das traições do companheiro, mas segue obstinada ao seu lado em um sofrimento mudo, cujo único meio de escoamento se dá através de pesadelos constantes. A fortaleza de um não vive sem a fragilidade do outro, e vice-versa.
Eleger um dos protagonistas como o mais significativo é tarefa impossível, mas não posso esconder que tive, sim, um preferido. A pintora Sabina tem na traição um modo de vida, algo que lhe atrai e dá prazer e, sobretudo, do qual sua essência não lhe deixa escapar. Não se trata somente da traição carnal: ela trai o puritanismo do pai, o comunismo na Escola de Belas-Artes (Sabina admirava Picasso), e, de certa maneira, a identidade do próprio país.
Mas tão essencial quanto as histórias entre os protagonistas, é toda a faceta política, histórica e social que permeia a trama. Diante da invasão russa na Tchecoslováquia, todos os quatro se verão por vezes de mãos atadas, oprimidos em uma pátria que inevitavelmente deixa neles sua marca indelével – por mais distantes que estejam dela fisicamente.
Existencialista, A Insustentável Leveza do Ser desconcerta. É aquele livro que nos faz querer saborear intensamente cada parágrafo, para então digeri-lo; que nos faz encarar os vazios dos personagens só para nos darmos conta de que não diferem muito do vazio que reside em nosso próprio ser. É o título que, ao lado de Cem Anos de Solidão, conquistou o posto de livro essencial da minha vida.
LEIA PORQUE...
É uma leitura encorpada, complexa – no melhor sentido da palavra – e que exige certa entrega da parte do leitor. Esteja preparado: provavelmente se tornará um dos livros mais inesquecíveis que você já leu.
DA EXPERIÊNCIA...
É difícil resumir em uma resenha tudo o que esse livro traz. Além da narrativa que toca fundo, digo que encontrei nele praticamente tudo de que mais gosto em uma leitura: conteúdo bastante psicológico, análise profunda dos personagens, divagações sobre as coisas da vida, contexto sociopolítico relevante para a trama, entre outros.
FEZ PENSAR EM...
"O sentido de um fim", de Julian Barnes. Também reflexivo, o livro fala sobre “a pequenez da vida”, o tempo, a memória. Vale a leitura.
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http://livrolab.blogspot.com