Humberto Serrab 30/01/2020
Se não existisse a educação obrigatória, teríamos um sistema de ensino melhor ou nenhum ensino?
O economista novaiorquino Murray Rothbard (1926-1995), considerado como o grande fundador do “anarcocapitalismo”, nunca teve expressiva guarida no meio universitário, sobretudo por carregar uma convicção inconteste de que o mercado privado teria muito mais eficácia para oferecer quaisquer serviços do que os concedidos à população pelo poder estatal. Pairava sobre Rothbard a certeza de que o Estado não passava de uma espécie de ladrão autorizado a empobrecer os cidadãos a fim de alimentar uma estrutura burocrática ineficiente, corrupta e desnecessária. Sim, para Rothbard, o imposto seria um roubo destinado ao sustento de uma classe parasitária, composta por intelectuais que não conseguiriam se sustentar caso oferecessem os seus serviços no mercado privado. É uma das teses que subjazem ao livro The Ethics of Liberty, de 1982.
A ética libertária pressuposta por Rothbard caminha no sentido de que os agentes privados teriam mais competência para o oferecimento de bens e serviços do que qualquer estrutura estatal, injustificável por si mesma em qualquer nível. Do ponto de vista moral, apenas o mercado composto por cidadãos livres poderia arranjar a sociedade. Curiosamente, dos cerca de vinte livros que o discípulo libertário de Ludwig Von Mises escreveu apenas um se dedicou exclusivamente ao tema da Educação. Trata-se de um pequeno ensaio de pouco mais de sessenta páginas chamado “Educação: livre e obrigatória”, publicado em 1972.
Neste livro, Rothbard equilibra bem as suas habilidades de analista social e historiador. O autor tenta demarcar a supremacia da individualidade humana sobre a escolarização oferecida pelo Estado. Como são diversos os homens, uma instrução obrigatória e formal teria por condão o arrefecimento das potencialidades individuais. Rothbard entende que a “educação formal” parte do pressuposto de que apenas a experiência escolarizada poderia transformar as potencialidades da criança em desenvolvimento efetivo. No entanto, o libertário discerne que a própria convivência familiar providenciaria os recursos para que as crianças se desenvolvessem sem a necessidade de uma instrução formal. Na tentativa de entronizar a individualidade como valor, Rothbard observa que os moldes escolares seriam ineficazes, já que – no ambiente da escola – um professor ensina um assunto de cada vez para todos os alunos. Aqueles que são mais inteligentes se sentiriam subjugados pelo nivelamento escolar necessário ao acompanhamento dos mais lentos. Logo, bons alunos seriam tolhidos em suas potencialidades. Já os ruins, assevera o economista, talvez nem precisassem estar na escola atrapalhando os outros. Discentes mais fracos poderiam se realizar na vida através de outras atividades não necessariamente ligadas ao universo intelectual.
O que justificaria, então, a existência de uma educação obrigatória? É neste momento em que Rothbard percorre exemplos históricos de vários países, desde a Reforma Protestante do século XVI, passando pela Prússia, a França, Inglaterra e – finalmente – registrando algumas notas sobre a educação compulsória nos Estados Unidos. Segundo Rothbard, a educação pública só existiria para legitimar em massa a existência do Estado, o qual usurparia o controle dos pais sobre a educação dos filhos, inibindo o desenvolvimento do raciocínio e do pensamento independentes. Caberia à educação escolar apenas o elogio do Estado, cujos efeitos mais reluzentes se fizeram nos sistemas educacionais fascistas, nazistas e comunistas. A homogeneização do processo educativo formaria uma consciência coletiva que legitimaria a existência do Estado. Se raciocinarmos analogamente, escolas públicas tornar-se-iam um instrumento de “roubo” comparável aos impostos. O currículo único engendrado sobre alunos tão diferentes entre si poderia se tornar o combustível futuro para os regimes políticos totalitários.
É interessante como Rothbard parte do pressuposto ético de que os homens vão engendrar relações espontâneas baseadas no benefício mútuo. Todos procurariam se ajudar neste universo libertário do livre mercado ocupado talvez por anjos celestiais, mas não por homens pecadores marcados pelas próprias idiossincrasias. Ao dizer que pais ocupados poderiam contratar tutores que cuidassem da educação dos filhos, Rothbard abre caminho para que um novo nicho de mercado se apresente – a dos professores particulares. O problema é que talvez seja mais profícuo iniciar a conversa pela realidade concreta em suas matizes históricas e sociológicas antes de criticar o estado das coisas.
Se não houvesse educação obrigatória, mesmo com todos os problemas que carrega, será que haveria qualquer sistema educacional? Tendo a crer que não. Isso porque faz parte da inteligência funcional de qualquer indivíduo escolher entre maçãs boas ou podres oferecidas na gôndola do supermercado. Mas e quando se tem em mente a educação dos próprios filhos? O discernimento do que significa uma boa educação – aquela que liberte a criança para o desenvolvimento das potencialidades – não está claro para a maioria das pessoas. Trabalhadores semianalfabetos que labutam como pedreiros em um canteiro de obras não carregam referências claras do significado de uma boa educação. Simplesmente entregam os filhos ao Estado esperando tanto a instrução conteudista de matérias quanto a inoculação de alguns valores republicanos, como o respeito ao próximo. Podemos discutir, claro, se esse é o modelo adequado. Pelo menos, há aqui alguma base. E quando os pais abusam, em algum nível, dos próprios filhos? Será que poderíamos realmente partir da pressuposição de que o ambiente familiar teria mais competência para conduzir a educação dos filhos do que o Estado?
Essas diferenças no horizonte de consciência de cada família em função de renda, escolaridade e posição, não são tratadas pelo autor. Acabam ignoradas. Vejamos o caso do Brasil em rápida nota para fechamento destas reflexões. Mais de 47 milhões de brasileiros não têm rede de esgoto em casa. Referimo-nos aqui a famílias paupérrimas cuja grande preocupação é a da sobrevivência diária. Levar algum alimento para casa e se abrigar da chuva. Se o Estado não obrigasse os filhos destas famílias à escolarização, será mais ponderado dizer que estas crianças estariam na escola ou vendendo balas em algum sinal? E falamos isso sob a égide moral de que esses pais em situação de miséria não prostituiriam, venderiam ou abandonariam os filhos. Algo que também é discutível, correto?
Em qual circunstância, para o aqui e agora, a educação livre seria uma melhor alternativa do que a pasteurizada educação pública obrigatória? Ora, para os que pudessem pagar. Para os ricos. Para aqueles que, como Rothbard, a existência do Estado nunca deixou de ser um interminável transtorno. Infelizmente, a verdade é que as teses do libertário novaiorquino não vão mais longe do que a tão conhecida perpetuação das desigualdades.