spoiler visualizaranna v. 08/01/2024
Continua ótimo, mas eu mudei
Li este livro logo que foi lançado no Brasil, em 2004. Gostei demais, e durante anos dei exemplares de presente para muitos amigos - sempre com grande sucesso. Agora, por acaso, passei por ele na estante e resolvi reler nesse início de 2024, 20 anos depois. O livro continua ótimo, mas eu mudei. E passei a observar coisas que antes me passavam despercebidas.
Equador é a história de Luís Bernardo Valença, um português burguês do início do século XX. Sem família, nunca se casou, e aos 37 anos se vê meio sem propósito na vida. Tem seus amigos, com quem se diverte em jantares e farras, tem alguns casos amorosos sem grande consequência, tem a empresa de navegação que herdou da família, e que vai tocando sem muito empenho, pois a coisa anda sozinha, sem necessidade de interferência, e lhe permite viver com conforto e sem se preocupar com dinheiro.
A situação das colônias portuguesas é objeto de grande debate na época (1905), e Luís Bernardo escreve uns artigos num jornal que acabam por criar uma polêmica que ele não desejava. Ele é crítico da administração colonial, e acha que Portugal precisa se modernizar. Mas a polêmica lhe causa grande aborrecimento e ele deixa isso pra lá.
No entanto, os seus artigos têm uma consequência inesperada: o rei D. Carlos manda chamá-lo a seu palácio em Vila Viçosa, entre uma caçada e outra, e lhe dá uma tarefa: ser governador de São Tomé e Príncipe, duas minúsculas ilhas na costa da África, cortadas pela linha do Equador, colônias portuguesas que produzem cacau e café. O busílis: a Inglaterra, grande compradora do cacau das ilhas, ameaça um boicote caso Portugal não prove que não usa mais mão de obra escrava em S. Tomé, pois acusam Portugal de concorrência desleal com as colônias britânicas que também produzem cacau. Para definir a situação, os ingleses vão enviar um cônsul a S. Tomé, para que observe in loco e reporte se existe ou não escravidão ali. O trabalho de Luís Bernardo é convencer o cônsul de que não existe escravidão nas ilhas. Mas ele próprio não sabe a resposta para essa pergunta (nunca esteve lá, não sabe nada sobre S. Tomé), e quando o pergunta diretamente ao rei, a resposta é evasiva e passa pela linha de argumentação "o que se entende por escravidão". Complexo, hein. Cilada, cilada, cilada.
Por uma série de fatores bem costurados pelo autor (um caso amoroso complicado, uma oferta inesperada para vender sua empresa por uma valor irrecusável, o incentivo de seu melhor amigo, João), Luís Bernardo topa a aventura e aceita a missão.
Sua chegada a São Tomé e Príncipe e aclimatação àquela realidade completamente alienígena é muito bem descrita pelo autor. O leitor sente tudo: o calor, os mosquitos, os empregados servis, os roceiros (portugueses donos de fazendas), os funcionários públicos locais que se tornam seus subordinados. E, claro, o trabalho nas roças, feito por trabalhadores angolanos que, sem sobra de dúvida, são escravizados - apesar de terem "contratos de trabalho", salário etc. Tudo literalmente "para inglês ver".
Em seguida somos apresentados à história de David Jameson, o cônsul inglês, e sua esposa Ann. Sua trajetória começa na Escócia e vai para a Índia, onde fez carreira política brilhante. David é jovem, inteligente, determinado, um "over-achiever" cheio de energia e empolgado com o mundo. Ele ama a Índia e sua cultura, sabe tudo sobre a complicada situação política local, transita por todos os meios, mesmo não sendo "high born", fala hindu e árabe, caça tigres com o marajá etc. E se casa com a linda e inteligente Ann, filha de um funcionário público inglês, que nasceu e sempre viveu na Índia. Os dois são o que se poderia chamar de "power couple". Mas, por uma infeliz causalidade, David cai em desgraça por sua própria culpa, e sua carreira vai pro brejo - mais especificamente, para S. Tomé, o mais obscuro posto a que um inglês poderia aspirar.
Quando o casal chega a S. Tomé, encontram em Luís Bernardo uma alma gêmea. Os três imediatamente se tornam grandes amigos. São os únicos com pensamento moderno naquele fim de mundo. Naturalmente os roceiros de S. Tomé não gostam nada daquilo, e as intrigas começam. E então o inevitável acontece: Ann e Luís se apaixonam.
Os níveis de complicação só aumentam. Luís não apenas trai o amigo como também sente que precisa persuadi-lo a mentir em seu relatório, para que ele, Luís, possa ter sucesso em sua missão.
Muitas coisas acontecem, o livro é cheio de ação, verdadeiramente empolgante, culminando num final inesperado e catártico.
Enfim, a leitura continua ótima, eu li em 3 dias as mais de 500 páginas, sem qualquer esforço.
Mas...
** e daqui pra frente tem ainda mais spoiler **
O que me saltou aos olhos hoje, e que eu não percebi na minha leitura 20 anos atrás, é que todas as personagens femininas (to-das) estão disponíveis sexualmente para nosso protagonista. Matilde, Maria Augusta, Ann e Doroteia (são apenas 4 personagens femininas que recebem nome em todo o romance), todas elas se rendem aos encantos de Luís Bernardo, e ele só não vai para a cama com sua empregada Doroteia - mas ela deixa claro que gostaria.
E por fim, hoje em dia seria muito difícil publicar um final com esse, em que a principal personagem feminina, Ann, é execrada pelo protagonista por simplesmente exercer sua sexualidade - ela, que deixou claro o tempo todo que era uma mulher livre e que não se sentia devedora de fidelidade conjugal ao marido e que, acima de tudo, gostava muito de sexo.
Isso talvez atrapalhe a leitura dos leitores contemporâneos, em especial os mais jovens.
Eu, de toda forma, mesmo com essa ressalva, continuo recomendando!