Gandhia 03/08/2016
A fome de arte quem saciou foi Patrícia Colmenero
Porque até a morte terei fome, de Patrícia Colmenero
Gandhia Brandão
Diz Omar Pamuk que “Um romance é uma segunda vida.”(1) Porque até a morte terei fome, de Patrícia Colmenero, brinda com um poema entre a dedicatória e o recado ao leitor a um primeiro óbito, denunciando desde a abertura que se há segunda vida pelas páginas que seguem, simples não será.
No entanto, pode-se falar de singeleza ao se apresentar o enredo do romance: um casal heterossexual termina o relacionamento por iniciativa do homem. O término, apesar de por vezes previsto, por vezes até desejado pela mulher, provoca grande sofrimento para ela.
Ora, mas não é o enredo que dá vida a um romance, que persuade um leitor, certo? O próprio recado inicial adverte que se trata de “mais uma história de amor”. Ainda assim, palavra por palavra, vê-mo-nos entrelaçados na trama que a autora tece repleta de antíteses, metonímias, sinestesias e ironia utilizando técnicas complexas como a bricolagem(2) , o fluxo de consciência, o pastiche(3) e a prosa poética.
"Assim como no sonho, quando lemos um romance, às vezes ficamos tão impressionados com a natureza das coisas que nele encontramos que esquecemos onde estamos e nos vemos no meio dos acontecimentos e das pessoas imaginárias que contemplamos." (4)
É justamente assim que a força analógica das metáforas que surgem nos versos da intensa narrativa de Colmenero deixa o leitor: suspenso. Frases/versos produzem imagens que provocam, fazem refletir, causam dor, afloram emoções, suscitam epifanias.
“Mas sei que, se escolho salvar-me fico sem muletas, eu mais sozinha que antes para a esperança de um talvez que pode nunca surgir.” (p. 182)
“Eu cri que, sonhando, preencheria o instante.” (p.71)
“Sangrento é necessitar.” (p. 119)
“Mas, perto da lava da vida, todos são inflamáveis.” (p. 131)
Além das imagens metafóricas, as ilustrações completam a narrativa com figuras adicionando eventualmente elementos relevantes e significativos. Por terem sido feitas com a técnica do pontilhismo, as figuras remetem à problemática em que se encontra a personagem, porosa, se esvaindo.
Por falar em técnica, a narradora-personagem narra na primeira pessoa do singular fazendo que seu espaço coincida com o espaço narrado. Quanto ao tempo, é fragmentado em trechos dispostos aleatoriamente, ou, pelo menos, esta que vos escreve não quis reorganizar a história cronologicamente para que a beleza do fractal não se perdesse.
Recursos gráficos também são utilizados na disposição das palavras. Tanto no que se refere à inserção de poemas, pois há diversos espalhados pela prosa, quanto no que tange à algumas formas geométricas, como o funil, sugerindo estados ontológicos de dois personagens em diferentes e brilhantes pontos da narrativa. Há negritos, páginas praticamente em branco, e outras completamente vazias, chaves, barras, enfim, amálgama de componentes que concedem ao texto o fluir da curiosidade.
"Do quê, então, depende a eficácia do estilo de um romance? De dois fatores: sua coerência interna e seu caráter de necessidade. (...) Se falar da coerência de um estilo não chega a ser tão difícil, explicar o caráter necessário, indispensável para que a linguagem do romance consiga persuadir, não é fácil." (5)
Deixo a discussão sobre o fato de um romance dever ou não ser eficaz para outrora, todavia, não se pode deixar de ressaltar que Porque até a morte terei fome é muito bem sucedido nesse quesito. Haja vista os poucos momentos em que o antagonista surge, causando asco no leitor que nutre empatia pela protagonista.
“Toca o telefone. É ele.
Oi querido…
Amor, terminei mais cedo aqui. Vamos ao cinema?
Ixi! Não posso! Estou com muito trabalho aqui…
Como assim, trabalho? Que trabalho?
Meu livro!
Ah…
O silêncio fala mais do que nós dois.” (p. 83/84)
Na edição especial do Leia Mulheres Brasília de 14 de abril de 2016, a autora, cujo romance estava em discussão, afirmou que não quis destacar o personagem Túlio, o antagonista, pois é “só um cara”, segundo a própria. Esse “cara” de fato é sempre revelado do ponto de vista da narradora, ou seja, nunca neutro e nunca livre de expectativas. Subvertendo a famosa frase de Antoine de Saint-Exupéry: “Tu te tornas eternamente responsável pelas expectativas que crias.” (Anônimo.) Contudo, sendo ele produto da projeção de um desejo ou não, é ele a motivação de um desespero.
A problematização da escrita é algo que permeia o romance do início ao fim, a começar pelo fato da personagem desejar ser escritora. Ela trabalha em um escritório de advocacia e cultiva verdadeiro desprezo por sua função, por seus colegas, pelo ambiente, por sua chefe(6) , pelo chefe geral, talvez até por Túlio, que também trabalha ali. Ela sofre, pois o trabalho no escritório, que deveria financiar uma vida cujo tempo livre seria usado para seu verdadeiro dom, a impede de exercer esse dom.
“Nunca escrevi muito. Minha prosa é quase um poema.” (p. 106)
“O que escrevo não é para agradar nem para ofender. É apenas uma secreção ou parte inteira de qualquer coisa. Uma descarga ou uma composição.” (p. 58)
“Não sou uma escritora clariceana, escrevendo em cada buraco cedido pelo dia. Só redijo quando meu corpo já não aguenta mais. Somatização de palavras.” (p. 41)
Na citação, há referência a Clarice Lispector, porém Clarice não surge apenas nesse momento e não há referência somente a Clarice, mas a Salvador Dalí, Martha Medeiros, Guimarães Rosa e Hilda Hilst, bem como há influências das outras mestres a quem Colmenero dedica o livro.
Simone du Beauvoir, por exemplo, é essencial na construção de Patrícia, cujo nome só aparece na página 165, o mesmo da autora. Segundo Mike Peixoto, o escritor da sinopse que se encontra na contracapa, trata-se de um romance de formação.
"Se um romance de aprendizagem, romance de formação ou Bildungsroman pode ser identificado a partir de seus elementos temáticos e/ou pedagógicos, sendo de fundamental importância a transformação do “herói” em consequência dos acontecimentos narrados, que tipo de “herói” é encontrado nesse romance e por que tipo de transformação ele passa?" (7)
Fiz essa pergunta em outro momento sobre outro “herói” em outra narrativa, mas creio que cabe perfeitamente por aqui. Metamorfose seria uma boa palavra? Ao confrontar o antagonista após muito tempo cultivando amargura, paranoia e depressão, Patrícia é capaz de exercer ato extremamente expressivo no sentido de registrar sua raiva e o início de sua libertação.
Aquele era um relacionamento fracassado e ela sabia. Entretanto, sabia como se não quisesse saber, como se tivesse a insaciável fome de se nutrir da ilusão daquele oco, do infinito vácuo da expectativa de um amor criado só por ela, só para ela. Túlio era o amor que ela gostaria de ter, que ela projetou, mas que ele jamais poderia lhe proporcionar. Incansável, apesar de se dizer cansada inúmeras vezes, Patrícia percorre sua trajetória para se libertar daquela obsessão.
"Vivi uma pequena morte. Porque o meu desejo padeceu de terrível hemorragia. Mas eu ressurgi.
A morte é o que faz as pessoas se moverem" (p. 168)
Desejo morto, romance morto, Romance findo, ilusão perdida. Patrícias, ambas construídas dignas de amores, paixões e leitores que as mereçam. Prontas. O concerto todo está aí, pois a fome de arte quem saciou foi Patrícia Colmenero.
Notas de rodapé que não saem aqui (grrrrr)
1 PAMUK, Omar. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das Letras: 2011.
2 “(...) evocar um movimento incidental (...) a possibilidade de permutar um ou outro elemento na função vacante, de tal forma que cada escolha acarretará uma reorganização total da estrutura.” LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Nacional, 1976.
3 “O pastiche, como a paródia, é a imitação de um estilo peculiar único, o uso de uma máscara estilística, a fala numa língua morta: mas é uma prática neutra dessa mímica, sem a motivação ulterior da paródia, sem o impulso satírico, sem o risco, sem aquele sentimento ainda latente de que existe algo normal, comparado ao qual aquilo que está sendo imitado é muito cômico. O pastiche é a paródia vazia, a paródia que perdeu seu senso de humor: o pastiche está para a paródia assim como está essa coisa curiosa – a prática moderna de uma espécie de ironia vazia – para o que Wayne Booth denomina de ironias estáveis e cômicas, digamos, do século XVIII.” (JAMESON, 1983. In: KAPLAN, E. Ann. O mal-estar no pós-modernismo: teorias, práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.)
4 PAMUK, Omar. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das Letras: 2011.
5 VARGAS LLOSA, Mario. Cartas a um jovem escritor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
6 Há uma cena real envolvendo a tal chefe, fato revelado na edição especial do Leia Mulheres, 14 de abril 2016. Aproveito para mencionar que, durante o debate, trechos do romance foram comparados com sonetos de Shakespeare por uma das leitoras, devido ao ritmo.
7 BRANDÃO, Gandhia Vargas. Literatura e Pós Modernidade. Brasília: UnB, 2008.
Referências Bibliográficas
. BRANDÃO, Gandhia Vargas. Literatura e Pós Modernidade. Brasília: UnB, 2008.
. JAMESON, 1983. In: KAPLAN, E. Ann. O mal-estar no pós-modernismo: teorias, práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Nacional, 1976.
. PAMUK, Omar. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das Letras: 2011.
. VARGAS LLOSA, Mario. Cartas a um jovem escritor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.