Bruno 21/06/2014Pais, álcool, com um pouco de quase-vampiros, e a questão da continuaçãoContinuações são sempre uma matéria complicada, especialmente quando o primeiro livro é considerado um clássico do gênero. Entre O iluminado e Doctor Sleep se passaram trinta e seis anos. Nestas décadas Stephen King cresceu como nome, marca, e escritor; tivemos uma adaptação para o cinema que também se tornou um clássico por si só; e a reputação de O iluminado é quase tão grande quanto a do seu autor. Então como se abordar uma tentativa de continuar esta história, de revisitar seu cânone e ressuscitar fantasmas esquecidos?
Fazendo um livro bem diferente. Lembro-me de ter lido O iluminado em 2010 e, ao saber dessa continuação, hibernava o desejo de lê-la muito em breve. Surgiu a oportunidade quando ganhei um exemplar como um lindo e ótimo presente de dia dos namorados (agradecimentos especiais ao Meu Amor™). Percebi então que sentia saudades da escrita do King. E fiquei bastante satisfeito.
Doctor Sleep foi muito bem recebido, inclusive ganhando um dos prêmios do Goodreads Choice Awards 2013. Não obstante, não deixou de ser um livro decepcionante para muitos, que esperavam outro O iluminado para, com o perdão do trocadilho, iluminar suas estantes. Mas esta sequência tem outra abordagem para os temas e elementos do seu predecessor, e uma que eu, particularmente, achei bem inteligente. Se temos décadas de distância entre os dois livros, colocamos décadas de distância entre seus acontecimentos. Depois disso, acho que o essencial era Stephen King não tentar repetir O iluminado, reusar seus temas ao pé da letra e nos apresentar um “revisitando o hotel Overlook” — a experiência, caso o tivesse feito, não seria nada menos que desapontadora.
Mas King nos presenteia com uma história diferente que ajuda ao se tratar de uma sequência não exatamente direta. As referências estão ali, a continuidade presente. Mas o Overlook, e um eventual retorno ao hotel; a loucura de seu pai Jack, a perseguição com uma marreta; a explosão — isso é secundário. O que importa é o agora, quase quarenta anos depois, e uma nova história, com diferentes personagens, em uma continuidade segregada que faz à história muito bem.
Danny Torrance agora prefere ser chamado de “Dan”. O menino de cinco anos agora tem mais de quarenta. Ele dizia que nunca beberia como o pai, mas nem tudo sai como dizemos na infância. Está se recuperando de seu alcoolismo através do muito proeminente grupo dos Alcoólatras Anônimos, que nesse livro tem participação especial. Seus problemas com bebida, a qual usava para tentar abafar o seu poder psíquico, jogam-lhe uma amargurada sombra dos problemas de seu genitor. Tenta se recuperar do seu alcoolismo na cidadezinha de Frazier, enquanto trabalha como zelador em um asilo para velhos, onde usa seus poderes para facilitar o descanso daqueles na fronteira com o além.
Mas a sua paz recém-encontrada é abalada com a descobrta da existência de um grupo de pessoas (ou “coisas”) que perseguem crianças com o mesmo poder de Dan. O True Knot, como se chamam, alimentam-se do último suspiro que as crianças soltam após serem mortas depois de grotescas sessões de tortura (“a dor purifica o vapor”). E eles estão atrás, agora, de uma garota chamada Abra, com um potencial de poder maior que o do próprio Daniel, e que se comunica com ele desde infante, através de suas mentes.
Creio que o trunfo aqui tenha sido se aproveitar dos elementos da mitologia criada em O iluminado para compor uma história bem diferente em gênero e grau. Pode sim ser inserida no gênero do horror, mas admito que também puxa bastante para o lado da fantasia. A criação de uma ambientação “aterrorizante” como as cenas do Overlook dá lugar a um confronto ao mesmo tempo mais distante e mais próximo. Doctor Sleep é tudo menos claustrofóbico. Acompanhamos uma história que se desenrola de New Hampshire até o Colorado, sempre no foco da cidade pequena que King parece tanto gostar de explorar (Derry, Salem’s Lot, e agora Frazier).
Outro fator que pode diminuir a sensação de horror da história é a apresentação de seus antagonistas. Em livros como A coisa e o próprio Iluminado, o antagonismo é sempre perpetrado por uma criatura ou elemento inalcançável, semi-invisível: coisas que estão além da compreensão humana e de natureza mais cósmica, impessoal ao mesmo tempo que terrivelmente próximas. O próprio Overlook é um exemplo, ou o quarto em 1408, ou a Coisa no livro homônimo.
Enquanto isso, o True Knot é composto por ex-pessoas que se relacionam normalmente e que, apesar de serem descritas muitas vezes como semi-humanas (things, lizardy thoughts etc), e mesmo como vários momentos dignos de repulsa, não deixam de passar uma espécie de familiaridade. É bastante reforçado que os membros do True Knot se amam, se respeitam, e são como uma enorme família. Mesmo com seu óbvio desdém pelos humanos normais, conseguem passar uma empatia que não seria possível com os antagonistas mais “cósmicos” de King.
Mas, também, antagonistas mais humanos podem aumentar o horror para certas pessoas, então talvez isso seja apenas uma questão de terrores pessoais. Provavelmente muita gente achou esse livro aterrorizante, mas eu sempre tive uma resistência grande com o horror literário, então, vai saber. Tirem suas próprias conclusões dessa parte.
A relação entre pai e filho, da qual até já falei um pouco antes em outros posts, também dá as caras em Doctor Sleep. Era inevitável. Dan, apesar de todas as promessas e todos os traumas, herdou os hábitos alcoólatras do pai, e por isso vive em uma espécie de sombra da qual busca se salvar. Ao mesmo tempo, vemos durante vários pedaços da narrativa que, a despeito de todas as provações, continua a amar a memória do pai como o amou quando era uma criança. O monstro no qual ele se transformou durante sua tomada pelo Overlook não minguaram aquele afeto filial. Chega a dizer em um ponto que ele e sua mãe amaram tanto o pai por seus defeitos quanto a despeito deles. Repousa nessa relação e na memória, aliadas a uma das cenas no clímax do livro, uma de suas partes mais bonitas.
Jack Torrance era um homem repleto de falhas, as quais descobrimos lá e aqui, e Dan, também repleto delas, conhece a gora um pouco desse lado difícil de ser adulto, de ser alcoólatra. Mas, ao mesmo tempo, deve tentar se livrar dessa relação direta, de ser um homem feito Jack Torrance, por mais que ainda nutra aquele afeto.
O tema de confonto de gerações se repete na figura de Abra, a garota perseguida pelo True Knot. Ela tem mais da iluminação que Dan tinha no livro anterior, e por isso se prova um alvo desejável para o grupo de antagonistas. Retratada como uma adolescente em seus treze anos, suas partes também estão recheadas com algumas curtas referências à cultura pop que pode abrir um sorriso em alguns, durante certos trechos do livro. Variamos entre seus focos, os de Dan e os do True Knot, e temos o contraste entre os o novo, o velho, e o muito velho. Abra varia entre seus medos e necessidade por ajuda de adultos com um desejo de se provar invencível; Dan deve regular seus temores práticos (como entrar em contato com Abra sem parecer um pedófilo?) com seus dilemas pessoais e a ameaça que os espreita.
Neste livro, temos um King que mais uma vez procura explorar um pouco destes dilemas da meia-idade, da relação pai e filho, dos problemas com o álcool e sua recuperação, sempre aliando estes temas com a mais recente ameaça maligna que conseguiu concatenar. E, considerando-se no geral os livros do King, o desfecho de Doctor Sleep é um dos mais satisfatórios. Não ficamos com aquela impressão de “ah, e agora?”, ou frustrado. Ele encerrou bem os enredos que trabalha e questões que aborda e torna este romance um dos seus bem amarrados.
site:
http://adlectorem.wordpress.com/2014/06/21/doctor-sleep/