Leonardo 03/05/2013
Um relato tocante que não é mais do mesmo
Disponível em http://catalisecritica.wordpress.com/
Há algum tempo, quando escrevi sobre as minhas impressões (negativas) a respeito de Bastardos Inglórios, disse que o tema 2ª Guerra Mundial estava mais do que saturado. Repeti isso quando escrevi sobre Beatriz e Virgílio, de Yann Martel, desta vez reconhecendo que é possível trazer à baila algo novo (e chocante). Chega às minhas mãos esse “O Diário de Helga”, e a primeira coisa que me veio à mente foi O Diário de Anne Frank, que não li.
Não comecei muito empolgado, mas esvaziei-me de qualquer preconceito, de qualquer saturação com o tema, para aproveitar o livro pelo que ele traz, não pelo que minha mente traz de maneira pré-concebida.
O livro é o “relato de uma menina sobre a vida em um campo de concentração”, informação que consta na capa. A contracapa acrescenta: “Das 15.000 crianças que foram para o campo de concentração de Terezín, calcula-se que apenas 100 estavam vivas no final da guerra. Helga Weiss foi uma delas. Seu diário inédito, escrito entre 1938 e 1945, revela como uma menina conseguiu sobreviver ao Holocausto”.
Nascida em 1929, Helga era uma menina entrando na adolescência quando a guerra começou. Ela vivia em Praga com seus pais, e é aí que começa a primeira parte do diário, que também contempla o período em que ela viveu no campo de concentração de Terezín, além de suas passagens por Auschwitz, Freiberg, Mauthausen e seu retorno a Praga.
Quando começa seu diário, fica clara a inocência de Helga em relação a boa parte do que se passa no mundo, mas também é evidente a sua inteligência e curiosidade. Nesta primeira parte o destaque é como se dá a transição de uma vida quase normal, afetada tangencialmente pela guerra, até a completa imersão no inferno nazista. Os primeiros sinais são as fugas para os porões por medo de ataques aéreos, os pais sempre atentos às notícias do rádio, o clima de tristeza e apreensão na escola quando se soube que o exército alemão invadiu a Tchecoslováquia. Logo que o Reich alemão assume a situação, o antissemitismo começa a crescer, e ordens antijudaicas não tardam a aparecer. Da proibição do acesso de alguns lugares públicos aos judeus até o envio para campos de concentração não demora muito.
Boa parte da primeira parte é ocupada pela apreensão da pequena Helga com o momento em que chegará a inevitável notícia do transporte da sua família, que nada mais é do que a transferência para um campo de concentração. Helga narra a viagem de trem, que é demorada, e começa a perceber que sua vida não será nada fácil.
A segunda parte do diário narra o período em que eles estiveram em Terezín, que era tido como um “campo de concentração modelo”. Isso não significa, naturalmente, que eles não tiveram seu quinhão de sofrimento. As coisas vão piorando com o tempo. Quando chega o Natal, Helga, que vive com sua mãe na ala feminina, narra sua tristeza pelo fato de seu pai, que vive do outro lado do campo, na ala masculina, não ter conseguido manipular o sistema e vir vê-las. Comecei a ficar fã desse homem quando li isso:
“É véspera de Natal. Que pena, seria mais saboroso se estivéssemos juntos. Esperamos em vão até escurecer. Poderíamos adivinhar que meu pai não viria. Ele não sabe manipular o sistema. É preciso molhar algumas mãos, mas meu pai não combina com mãos molhadas.”
À medida que o tempo passa, as coisas pioram. Aqui cabe uma das passagens mais marcantes do diário:
“Todos os carros fúnebres estão em uso. Pela primeira vez levam uma carga viva. E, no entanto, não poderia ser mais apropriado. Aonde esses destroços de seres humanos irão? Onde serão jogados seus corpos? Ninguém chorará por eles, ninguém lamentará sua morte. Até que, um dia, sejam mencionados em nossos livros escolares. Aí, o único título apropriado será: ‘Enterrados vivos’”.
Um dos momentos mais difíceis para Helga e sua mãe em Terezín foi a partida de seu pai para outro campo de concentração, provavelmente Auschwitz:
“Meu pai está pronto. Ele provavelmente não precisaria ir; poderia ser remanejado. Poderia se safar, mas não seria ele. ‘Pedir por mim? Cinco mil irão, por que eu não deveria ir também? Alguém precisaria ir no meu lugar’”.
Aí, definitivamente, fiquei fã do pai de Helga.
O diário segue e Helga vai narrando com detalhes seu cotidiano, suas pequenas lutas, destacando sempre que ela não se permitia “frescuras”. Não importava quão ruim ou intragável era a comida, se aparecia a chance de comer, ela comia. Precisava ser pragmática, forte, resistente. Rezava sempre para que se acontecesse de morrer, que sua mãe morresse junto. Não suportaria saber que ficaria só ou que a deixaria só. Ela e sua mãe passam fome, adoecem, são maltratadas, passam frio, são transportadas de um lugar para o outro e seu sofrimento aumenta ainda mais – o que sequer parece possível – quando vão para Auschwitz. Há momentos em que ela chega a pensar no suicídio, mas o amor por sua mãe fala mais alto.
Sempre mantendo viva a esperança de reencontrar seu pai, ela divaga assim em certo momento:
“Minha parte preferida no dia é quando voltamos ao pátio de trabalho. Os especialistas ainda não retornaram do jantar e as luzes estão apagadas. Sara nos manda para o trabalho cedo, sem a menor necessidade. Eu sempre subo ao topo do andaime para ficar sozinha por alguns minutos. É o único momento do dia em que não vejo outras pessoas... Papai e eu prometemos que sempre pensaríamos um no outro às sete da noite. Não é possível no meio da confusão, do aperto e do barulho da refeição. Então penso nele meia hora depois. Talvez meu pai também não tenha tempo às sete em ponto. Talvez esteja dormindo após o turno do dia, ou começando a trabalhar, ou talvez tenha um intervalo exatamente na mesma hora e esteja pensando em nós.”
Apesar de o diário não ser em sua totalidade um diário – Helga escreveu boa parte dele nos anos que se seguiram ao fim da guerra – é tudo muito vívido e real. Helga, que é uma artista, uma talentosíssima pintora, deixa transparecer sua imensa sensibilidade também no seu texto.
Encerro com uma pergunta feita a Helga Weiss em 1º de dezembro de 2011 por Neil Bermel, que é uma pergunta que me fiz antes de iniciar a leitura do diário:
Por que deveríamos ler mais um relato sobre o Holocausto?
Resposta de Helga: Principalmente por ser verdadeiro. Coloquei nele meus sentimentos, esses sentimentos são intensos, comoventes e principalmente verdadeiros. E, talvez, por ser narrado naquela forma um pouco infantil, é acessível, expressivo, e creio que ajudará as pessoas a entender aqueles tempos.