Higor151 22/09/2019
Sobre pressão - e opressão - psicológica em regimes totalitários
Há anos eu esperava pelo nomeado melhor livro e Herta Müller, que lá fora era conhecido como “A terra das ameixas verdes”. O livro recebera prêmios fora do país, catapultando a autora para níveis internacionais e inimagináveis, dando visibilidade para que ela ganhasse o Nobel logo mais, em 2009. Logo, eu queria conhece-lo, afinal, minha experiência com a ficção de Müller não era das melhores, e eu precisava, de alguma forma, ou em algum livro, acertar as contas: passar a detestar sua ficção e amar seus ensaios, ou reverter o quadro.
E não é que o livro estava na minha estante há anos? Traduzido com relativo atraso como ‘Fera d’alma’, eu demorei anos, por negligencia, é preciso dizer, para saciar o que eu tanto ansiava. Temos aqui, de fato, o melhor livro de Müller.
Entre metáforas e sem uma cronologia, acompanhamos a vida de um grupo de quatro jovens universitários no período autoritário comunista que assolou a Romênia, especificamente durante o regime de Nicolae Ceaușescu, entre 1965 e 1989.
Todo começa com Lola, uma garota a quem todos observam sua graciosidade (e ‘vulgaridade’), mas sem saber que ela relata, em um diário como válvula de escape, tudo o que pensa sobre o regime opressor. Bissexual, indiferente a padrões e comentários, e acusada de trair o partido e aparece morta. A narradora, então, passa a compartilhar com os amigos o diário de Lola, e o grupo passa a se apegar a ele, a ter a jovem morta como uma inspiração para ser contrários ao regime opressor.
Embora aborde um tema relativamente comum, o de um regime totalitário, o que se sobrepõe na obra de Müller é a opressão psicológica, e não física. É a sensação de desconfiança, de estar sendo vigiados 24 horas por dia que assola os personagens e o leitor. Essa prisão sufoca, machuca mais que violência.
O grupo precisa esconder livros, fotos, assim como criar enigmas para escrever cartas sem ser descobertos: A palavra tesourinha de unha em uma rase quando alguém tiver sido interrogado, assim como a palavra sapatos para quem fora inspecionado. Em caso de ameaças de morte apenas uma vírgula. E sempre colocar um fio de cabelo na carta. Se não houver nenhum, eles saberiam que foi aberta.
Menos alegórica que em, por exemplo, Depressões, seu primeiro livro, Müller ainda utiliza o recurso para trazer poesia em meio ao caos. Os jovens, de universitários, passam a viver na capital, em empregos impostos pelo sistema, que até nisso mostra quem manda, e o que acontece quando não andam na linha. Sem uma sequer gota de sangue, mas com os nervos a flor da pele, temendo o pior.
Sufocante, ‘Fera d’alma’ é a clara justificativa do prêmio Nobel em laureá-la: dado voz aos despossuídos, à minoria, Müller não hesita em expor ao mundo as atrocidades de uma sociedade totalitária, mesmo que não seja compreendida, e às vezes até tentem silenciá-la.
Este livro faz parte do projeto 'Lendo Nobel'. Mais em:
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