Carla.Parreira 21/10/2023
A psicanálise dos contos de fadas
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Eis um resumo geral da leitura em si: A criança ?divide? as pessoas que a rodeiam em boas e em más. ?Divide-se? a ela própria quando não se assume como culpada de coisas que fez e que a desgostam: chega a afirmar que não foi ela quem fez isto ou aquilo (que realmente fez). Num mundo já de si perfeitamente antagônico, ela intuitivamente ?divide? tudo em bom e mau, para assim encontrar o seu equilíbrio. E, no entanto, quantas vezes se inquieta: porque será, ela própria, obediente e teimosa, boa e má, valente e medrosa, uma contradição viva?
A maturidade psicológica consiste na aquisição de uma segura compreensão do que pode ou deve ser o sentido da nossa vida. E esta realização é o resultado final de uma longa evolução: em cada estádio procuramos, e temos de encontrar, um mínimo de sentido, adequado à forma como o nosso espírito e a nossa compreensão já evoluíram. Os contos de fadas são portadores de mensagens importantes para o psiquismo consciente, pré-consciente ou inconsciente, qualquer que seja o nível em que funcionem. Lidando com problemas humanos universais, especialmente com os que preocupam o espírito da criança, as histórias falam ao seu ego nascente, encorajando o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, aliviam tensões pré-conscientes ou inconscientes.
A psicanálise foi criada para habilitar o homem a aceitar a natureza problemática da sua vida sem ser vencido por ela e sem se entregar à fuga sistemática. É esta exatamente a mensagem que os contos de fadas trazem à criança, de múltiplas formas: que a luta contra graves dificuldades na vida é inevitável, faz parte intrínseca da existência humana, mas se o homem com coragem e determinação enfrentar as dificuldades, muitas vezes inesperadas e injustas, acabará por dominar todos os obstáculos e sair vitorioso. Os temas dos contos de fadas não são sintomas neuróticos, algo que importa compreendermos de forma racional, para mais depressa nos vermos livres deles. Esses temas são sentidos como autênticas maravilhas pela criança, porque através deles se sente compreendida e apreciada no seu âmago, nos seus sentimentos, nas suas esperanças e angústias, sem que seja preciso trazer tudo isso à superfície para ser investigado à luz crua de uma racionalidade que ainda está para além da compreensão infantil. Os contos de fadas enriquecem a vida da criança e apresentam-se com uma qualidade de encantamento, exatamente porque ela não sabe como é que as histórias produziram em si semelhante prodígio.
O objetivo dos contos de fadas não é dar informação útil sobre o mundo exterior, mas sim sobre os processos psicológicos interiores que têm lugar num indivíduo. A história ilustrada perde muito do conteúdo pessoal que poderia trazer à criança que lhe aplicasse somente as suas próprias associações visuais, em vez das de quem as desenhou. Quando todos os devaneios da criança se personalizam numa fada bondosa, todos os seus desejos destrutivos numa bruxa má, todos os seus receios num lobo voraz, todas as ciências da sua consciência num homem sábio encontrado numa aventura, toda a sua zanga ciumenta nalgum animal que dê bicadas nos olhos dos seus rivais detestados ? então a criança pode finalmente começar a pôr ordem nas suas tendências contraditórias. Iniciado este fato, a criança será cada vez menos submergida por um caos incontrolável.
Ao contrário disso, se contarem a uma criança histórias ?verdadeiras como a realidade? (o que quer dizer falsas para partes importantes da sua realidade interior), ela pode concluir que muito dessa realidade interior é inaceitável para os seus pais. Assim, há muita criança que se afasta da sua vida interior, e isso a depaupera. Consequentemente, ela pode depois, já adolescente e, fora da ascendência emocional dos seus pais, vir a detestar o mundo racional e escapar-se completamente para um mundo de fantasia, como que para se desforrar do que perdeu na infância. Quando for mais velha, isso poderá implicar numa severa quebra com a realidade, com todas as perigosas consequências para o indivíduo e para a sociedade. Ou, menos seriamente, a pessoa poderá continuar esta clausura do seu ?eu? interior toda a sua vida, e não se sentir nunca plenamente satisfeita com o mundo, porque, alienada dos processos inconscientes, ela não pode usá-los para enriquecer a sua vida na realidade das coisas. A vida deixa então de ser ?um prazer? ou ?uma espécie de privilégio excêntrico?. Com tal separação, o que quer que aconteça na realidade deixa de oferecer satisfação apropriada às necessidades inconscientes. O resultado é que a pessoa sente sempre que a sua vida é incompleta.
Somos mais do que os nossos corpos, mentes, emoções, necessidades, desejos e sonhos pessoais. Temos uma natureza superior e transcendente e fazemos parte de uma espécie que está paulatinamente a evoluir no sentido da totalidade. A criança pequena não está separada desse eu transcendente, mas o adolescente, em busca do conhecimento racional e intelectual do mundo, acaba por se distanciar da sua natureza espiritual. As imagens mentais dirigidas dão aos adolescentes uma oportunidade valiosa de sanar esta dicotomia entre mente e coração. A primeira coisa que devemos fazer é ouvir ou ler os contos, deixando que as imagens e as sensações surjam livremente, como se estivéssemos a sonhar. Neste estágio, é importante não tentarmos interpretar o sentido da história ou dos símbolos. Temos de experimentar interiormente o que os personagens vivem e sentem, a fim de que o poder do conto e das suas imagens possa atingir o seu pleno desenvolvimento. As crianças sabem predispor-se instintivamente à escuta dos contos. Os adultos sentem uma maior dificuldade, por causa das barreiras mentais e dos juízos de valor que abafam frequentemente a emoção. Temos de nos colocar em sintonia com o conteúdo da história e seguir atentamente as mínimas peripécias, mesmo que nos pareçam incompreensíveis. Antes de estudar detalhadamente as regras precisas que os contos nos ensinam, é bom saborear a sua magia e abordá-los com um coração de criança. Esta abordagem exige humildade da parte do ouvinte ou do leitor e é um ato de fé face à porção de verdade que a história traz até nós.
Para ler um conto sob o ponto de vista da psicologia analítica junguiana, é necessário levar em conta que todas as personagens são uma só ? o protagonista diante de todos os aspectos da sua psique e o caminho frequentemente difícil para alcançar a individuação. É a história de nós mesmos a caminho de nós mesmos. Enquanto que a fantasia é irreal, os bons sentimentos que nos oferece sobre nós próprios e o nosso futuro são reais e estes bons sentimentos efetivos são aquilo de que precisamos para nos apoiar. O conto de fadas não nos fala de uma solução feliz que se atingiu sem qualquer esforço. As mais variadas histórias falam todas de certo problema que só se resolve quando o herói ou a heroína se submetem a provas e a sofrimentos. Isto significa que a criança não ultrapassará a sua crise até estar pronta para evoluir por meio de um combate e até que seja capaz de reconhecer, de forma ampla, o seu problema, e tenha assim atingido a maturidade.
O crescimento implica mudança. Pode parecer paradoxal que, para fortalecer a nossa identidade, devamos estar disponíveis para aceitar a mudança, mas é igualmente paradoxal que a nossa identidade se dilua quando a tentamos fortalecer evitando qualquer alteração na nossa aparência exterior. Atrás de cada objeto experimentado por nós, por mais inanimado que seja, há, de certa forma, uma consciência viva. O universo em que se vive somos nós que o fazemos: metamorfoseamos uma realidade que aparentemente é estática e animamo-la com o nosso imaginário. E o que é que acontece? Olhar para uma porta que é um objeto inanimado é uma coisa. Outra coisa é sonhar com uma porta que se abre e dá acesso a um elemento irracional e simbólico: a porta que me leva para outro mundo, para uma realidade diferente. Há elementos de caráter mágico-religioso nos nossos sonhos, que correspondem um pouco a essas portas que se abrem no conto de fadas, a esses seres pequeninos que servem de guias nas nossas aventuras.
Apenas na idade adulta podemos obter uma compreensão inteligente do significado da própria existência neste mundo a partir da própria experiência nele vivida. Infelizmente, muitos pais querem que as mentes dos filhos funcionem como as suas ? como se uma compreensão madura sobre nós mesmos e o mundo, e nossas ideias sobre o significado da vida não tivessem que se desenvolver tão lentamente quanto nossos corpos e mentes. Nos contos de fadas a menina edípica vê na mãe a madrasta ou feiticeira que impedem o amante (pai) de encontrar a princesa (ela própria enquanto filha). O menino edípico, por sua vez, que se sente ameaçado por seu pai devido ao desejo de substituí-lo nas atenções da mãe, projeta o pai no papel de monstro ameaçador.
Enquanto que o menino edípico não deseja qualquer criança que interfira no completo envolvimento da mãe com ele, as coisas são diferentes para a menina edípica. Ela realmente deseja dar a seu pai o presente amoroso de ser mãe de seus filhos. É difícil determinar se isto é uma expressão de sua necessidade de competir com a mãe a este respeito, ou uma leve antecipação da sua futura maternidade. Este desejo de dar um filho ao pai não significa ter relações sexuais com ele ? a menina, como o menino, não pensa nestes termos concretos. Ela sabe que os filhos são o que liga o homem do modo mais intenso à mulher. Esta é a razão pela qual, nas estórias que lidam simbolicamente com os desejos edípicos, com os problemas e esforços de uma menina, os filhos são mencionados ocasionalmente como parte do final feliz.
Assim, tanto as meninas como os meninos edípicos, graças ao conto de fadas, podem ter o melhor dos dois mundos: podem gozar plenamente as satisfações edípicas na fantasia e na vida real, manter boas relações com os dois pais. Para o menino edípico, se a mãe o decepciona, existe a princesa do conto de fadas no fundo de sua mente ? aquela mulher maravilhosa do futuro que compensará todas as labutas presentes, e cuja lembrança torna mais fácil suportar estes esforços. Se o pai dá menos atenção à filha do que ela deseja, ela pode suportar esta adversidade porque chegará um príncipe a quem ela preferirá mais que todos os outros rivais. Como tudo ocorre numa terra-do-nunca, a criança não precisa se sentir culpada ou ansiosa de projetar o pai no papel de um dragão ou de um gigante malvado, ou a mãe no papel de uma madrasta ou bruxa miserável.
Assim, a criança obtém o melhor dos dois mundos, que é o que necessita para se transformar num adulto seguro. Em fantasia, a menina pode vencer a (mãe) madrasta, cujos esforços para impedir sua felicidade com o príncipe fracassam; o menino pode matar o monstro e obter o que deseja numa terra distante. Ao mesmo tempo, tanto o menino quanto a menina podem manter em casa o pai real como protetor e a mãe real que fornece todos os cuidados e satisfações de que a criança necessita. Como fica claro todo o tempo que a matança do dragão e o casamento com a princesa prisioneira, ou o encontro com o príncipe encantado e a punição da bruxa malvada ocorrem em tempos e países longínquos, a criança normal nunca os mistura com a realidade. Alguns pais temem que os filhos sejam arrebatados pela fantasia; que, expostos aos contos de fadas, passem a acreditar em mágica. Mas toda criança acredita em mágica, e deixa de fazê-lo ao crescer (com exceção dos que foram muito decepcionados com a realidade para poder confiar nas suas recompensas). Há crianças com distúrbios que nunca ouviram estórias de fadas, mas que colocam num ventilador ou motor elétrico mais mágica e poder destrutivo do que qualquer estória de fadas impõe ao personagem mais poderoso e execrável.
Se uma criança, por qualquer razão, é incapaz de imaginar seu futuro de modo otimista, estabelece-se uma parada no desenvolvimento. O exemplo extremo pode ser encontrado no comportamento da criança que sofre de autismo infantil. Ela não fez nada ou intermitentemente irrompe numa explosão temperamental grave, mas em qualquer caso insiste que nada deve ser alterado no seu ambiente e nas condições de sua vida. Tudo isto é a consequência de sua incapacidade completa de imaginar qualquer mudança para melhor. Sabemos que, quanto mais infelizes e desesperados estamos, tanto mais necessitamos de ser capazes de envolvermo-nos em fantasias otimistas. Mas estas não estão à nossa disposição nestes períodos. Então, mais do que em qualquer outra ocasião, necessitamos de outros que nos levantem com sua esperança por nós e nosso futuro. Nenhum conto de fadas por si só fará isto pela criança; como a criança autista nos faz lembrar, necessitamos primeiro que nossos pais instilem esperança em nós. Embora a fantasia seja irreal, os bons sentimentos que ela nos dá sobre nós mesmos e nosso futuro são reais, e estes bons sentimentos reais são o de que necessitamos para sustentar-nos. Pessoas esquizofrênicas geralmente não conseguem estabelecer contato com a realidade porque não querem perder o mundo imaginário, o qual, independente de ser bom ou ruim, defende a todo custo.
Repetidamente nos contos de fadas uma relação insatisfatória com um dos pais ? como é invariavelmente uma relação edípica ? é substituída, como o elo de Cinderela com um pai fraco e ineficaz, por uma relação feliz com o parceiro conjugal salvador. A ansiedade da criança quanto ao fracasso se centra na ideia de que, se falhar, será rejeitada, abandonada e totalmente destruída. Assim, só uma estória na qual um ogro, ou outra personagem malvada, ameace o herói de destruição, se ele falhar em mostrar-se o bastante forte para enfrentar o usurpador, está correta, de acordo com a visão psicológica da criança quanto às consequências de seu fracasso. Não há maior ameaça na vida do que ser abandonado e ficar completamente sozinho. A psicanálise chama isto ? o maior medo do homem ? de ansiedade de separação; e quanto mais novos somos, mais excruciante nossa ansiedade quando nos sentimos abandonados, pois a criança nova realmente perece se não for adequadamente protegida e cuidada. Por conseguinte, o consolo fundamental é o de que nunca será abandonada.
Os contos de fadas falam à mente inconsciente e são vivenciados quando nos dizem algo importante, independente do sexo dos protagonistas ou do nosso. Nos contos onde pessoas são transformadas em animais por causa de um feitiço ou punição, isso encera a ideia-tabu do sexo animalizado. Vale notar que na maioria dos contos ocidentais a fera é masculina e só pode ser desencantada pelo amor de uma mulher. Podemos presumir que os inventores destes contos achavam que, para se conseguir uma união feliz, cabe à mulher vencer sua visão do sexo como repugnante e animalesco. Há também contos ocidentais em que a mulher, por feitiço, transforma-se em animal, e então cabe ao homem desencantá-la através do amor e coragem firme. Mas em praticamente todos os exemplos de noiva-animal não há nada de repugnante ou perigoso na sua forma animal, ao contrário, elas são encantadoras. O ensino básico é: enquanto um dos parceiros sentir repulsa pelo sexo, o outro não poderá apreciá-lo; enquanto um deles encará-lo como algo animalesco, o outro permanecerá parcialmente um animal diante de si mesmo e para o parceiro. Em outro nível tais estórias dizem que não podemos esperar que nossos primeiros contatos eróticos sejam agradáveis, pois são demasiado difíceis e estão cercados de ansiedade. Mas se prosseguirmos, apesar de uma repugnância temporária, permitindo que o outro se torne sempre mais íntimo, em algum momento vivenciaremos um choque feliz de reconhecimento quando a intimidade completa revelar a verdadeira beleza da sexualidade.