Leonardo 18/05/2013
Um grande livro sobre uma grande figura, para o bem ou para o mal
Disponível em http://catalisecritica.wordpress.com
Mesmo que você não seja muito ligado à política, é muito pouco provável que você não tenha ouvido falar de Hugo Chávez, ex-presidente da Venezuela, morto vítima de câncer em março deste ano. No local onde trabalho (sou servidor público federal) a grande maioria dos colegas vive discutindo política, e os embates se tornam mais fervorosos porque há defensores de correntes de esquerda, de direita, e aqueles cínicos, que gostam é de ver o circo pegar fogo. Hugo Chávez sempre foi assunto por lá. Alguns o defendiam, outros o atacavam. Uns diziam que ele era um ditador, outros diziam que não, que ele chegara ao poder democraticamente e se reelegera sempre democraticamente. Eu não sou simpatizante da esquerda, mas também não sou um militante da direita. Por conta disso, ouvia as discussões, via eventualmente as notícias, mas nunca havia me preocupado em formar uma opinião mais contundente em relação ao “Comandante”. De qualquer maneira, a minha impressão superficial de Hugo Chávez é que ele se tratava de mais um ditador de esquerda, que buscava se legitimar no poder mais ou menos pelos mesmos meios que todos os ditadores de esquerda sempre usavam. E, defensor que sou da democracia, abomino ditaduras de direita, de esquerda, de centro ou de canto.
Este é o segundo livro que resenho como parte da parceria do blog com a Editora Intrínseca. O primeiro foi O Diário de Helga, do qual gostei bastante. Qualquer um que acompanhe o Catálise Crítica há algum tempo pode perceber que ambos os livros destoam um pouco do que usualmente resenho. Normalmente, leio ficção ou livros com ensaios sobre a escrita. Diários de guerra e o retrato de um presidente venezuelano não se encaixam bem no menu do blog.
Por que escolhi esses livros então? Sendo bem sincero, não achei que eu fosse gostar muito (ou apenas gostar) de nenhum dos livros de ficção que foram disponibilizados pela editora. Não entrei na parceria para ler o alavancar os acessos do blog de qualquer maneira, lendo o que não gosto (e, mais uma vez, quem acompanha o blog sabe o estilo de livros que costumo ler). Assim, optei por esses dois livros por exclusão, mas posso garantir que acertei na mosca. Se gostei bastante de O Diário de Helga, este livro de Rory Carroll me surpreendeu bastante. O livro chegou ontem à noite, li umas noventa páginas e hoje não consegui largar antes de terminar.
Comandante – a Venezuela de Hugo Chávez é fruto dos anos que Rory Carroll, correspondente do jornal inglês Guardian, morou em Caracas para cobrir a América do Sul. A primeira coisa que notei, ainda no Prólogo, foi a prosa agradável e bem escrita de Carroll. Percebi que seria um livro bom de se ler. Ele divide a obra em doze capítulos e viaja habilmente pelos catorze anos em que Hugo Rafael Chávez Frías foi presidente da Venezuela. Passa também pela infância do Comandante, pelo seu tempo de quartel, pela tentativa frustrada de um golpe militar em 1992, pelos seus anos na prisão, pelo seu retorno triunfal como candidato da oposição nas eleições de 1998, vencendo a eleição presidencial.
As fontes do livro de Carroll são diversas. Desde as infindáveis fontes oficiais, como o semanário Aló Presidente, que podia durar mais de oito horas, até diversas entrevistas realizadas pelo próprio jornalista, que incluem figurões do governo, naturalmente chavistas, até dissidentes, ex-apoiadores de Chávez que em determinado momento caíram em desgraça junto ao Comandante.
Para Rory Carroll, a maior característica de Hugo Chávez, o seu ponto mais forte era seu carisma, sua capacidade de seduzir por meio do discurso, do olhar na ora certa, do sorriso, da irreverência, e de tantas ferramentas de que o Comandante se serviu durante seus longos anos no poder.
“Como iniciante no espanhol, apreciei as habilidades de comunicação de Chávez. Com todas as suas expressões venezuelanas idiossincráticas e coloquiais, ele falava com clareza, enunciando cada palavra e repetindo expressões fundamentais até que o sentido ficasse cristalino. O problema era que ele nunca se calava. Ligava-se a TV ou o rádio a qualquer hora, e pronto, invariavelmente lá estava ele. Falando sobre qualquer coisa. O preço do leite, a produção de alumínio, George Bush, beisebol, sua neta.”
“Todo chefe de governo usa a mídia para justificar e persuadir, projetar e polir, mas nenhum é como Chávez. Ele aparecia na televisão quase todo dia, às vezes durante horas, sempre ao vivo, sem roteiro ou teleprompter, considerando, refletindo, decidindo, ordenando. Sua palavra era lei de facto, e ele se especializou em anúncios imprevisíveis: nacionalizações, referendos, mobilização de tropas, mudanças no ministério. Assistia-se não apenas pelo valor da notícia em si. O homem era um artista consumado. Ele cantava, dançava, balançava-se ao som de um rap; andava a cavalo, num tanque, de bicicleta; apontava um fuzil, embalava uma criança, fazia caretas, jogava beijinhos; bancava o bobo, o estadista, o patriarca. Havia um ar descontraído, improvisado em tudo. O suspense vinha de não se saber o que aconteceria. A televisão estatal, que sob o comando de Chávez se multiplicou de um para oito canais, o mostrava continuamente.”
Eu nasci e vivi por muitos anos numa pequena cidade do interior da Bahia. Trabalho há dez anos fiscalizando prefeituras do interior de Sergipe, por isso posso dizer que sei bem como funciona a política em grande parte do interior nordestino. A impessoalidade, princípio da Administração Pública, é solenemente ignorada. O prefeito é o cara, parafraseando Obama. Precisa de um colchão? Peça a ele. Precisa de um emprego? Idem. Uma cirurgia no olho? Também. Problemas com a justiça? O prefeito. Quer pagar uma promessa e não tem o dinheiro? O prefeito. E assim por diante. Quando se fala que o governo estadual ou federal aqui no Brasil é assistencialista, é necessário guardar a devida proporção em relação aos municípios, especialmente os menores, onde se convive com o prefeito e com os vereadores. O eleitor encontra o prefeito na missa, numa festa, jogando bola, o que é bem mais raro quando se fala de um governador e quase impossível quando se fala de um presidente.
Na Venezuela, entretanto, Hugo Chávez conseguia levar o assistencialismo a um nível quase inimaginável. Quando o Comandante andava no meio das multidões, ao seu lado estava um “coletor de desejos”. As pessoas entregavam cartinhas com pedidos bem pessoais, deixando até o número de telefone, na esperança que o Presidente os atenderia. E em muitos casos ele atendia!
“Uma cordial saudação bolivariana, eu gostaria de pedir, por favor, sua ajuda com um emprego e uma pensão para a minha mãe. Eu lhe dou meu número de teleone xxxxxxxxx e xxxxxxx. Esperando a sua pronta resposta esta camarada se despede. QUE DEUS O ABENÇOE MEU PRESIDENTE.
Gloria Camejo Mujica”
“Sr. Presidente eu preciso da sua ajuda eu sou inválido eu quero trabalhar no governo como um verdadeiro revolucionário (…) o senhor é o verdadeiro filho de Simon Bolívar que Deus o abençoe.
Hernán Cortés”
Hugo Chávez estimulava esta imagem de pai, de protetor, de um quase Deus. Fazia questão de exibir-se como homem do povo, e por isso mesmo, única esperança do povo venezuelano sempre excluído. Um dos exemplos das quebras de protocolo mais constrangedores diz respeito ao seu casamento. Ele costumava aparecer na sacada do Palácio de Miraflores e beijar sua esposa, para delírio da multidão. Em um programa no Dia dos Namorados em 2000, ele olhou maliciosamente para a câmera e disse: “Marisabel, esta noite você vai receber o que é seu”.
Alguma semelhança com nosso ex-presidente? Pois é, acho que Lula era até comportado perto de Hugo Chávez…
Ainda no quesito “comunicação”, uma característica sempre marcante de Chávez era a agressividade em relação aos seus desafetos. Xingamentos ao vivo eram comuns. O jornalista Rory Carroll defende a tese de que era tudo parte da grande esperteza do Comandante. Ele xingava a aristocracia, os opressores, os donos do poder, aqueles que sempre escravizaram o povo venezuelano. Quando esses mesmos opressores respondiam à altura com ofensas, o povo – os pobres – acabava ficando do lado de Chávez, que representava sua esperança.
Em 2003, Chávez enfrentou um momento difícil. Depois de uma tentativa frustrada de um golpe e abril de 2002, agora a oposição planejou uma greve nacional. Indústria petroleira, lojas, escolas, restaurantes, fábricas, tudo foi desativado ou interrompido, com o objetivo de gerar insatisfação popular contra o Comandante. Aconteceu então um episódio quase anedótico que demonstra bem como Chávez lidava com seus opositores. O General Acosta Carles dirigiu-se até uma envasadora de cerveja, Coca-Cola e água mineral, propriedade de um bilionário venezuelano que apoiava a greve. Repórteres de jornais da oposição acompanhavam-no. Ele invadiu a envasadora para reabri-la e garantir a distribuição para o povo. Uma jovem repórter perguntou se ele tinha autorização da agência reguladora para invadir a fábrica. O general abriu uma garrafa de cerveja quente, mostrou para a câmera e em seguida esvaziou-a garganta abaixo. Logo depois, baixou os olhos para os microfones, abriu a boca e soltou um estrondoso arroto. Olhou a repórter, assustada, e disse:
- Perdão, senhorita.
E arrotou de novo. Tudo isso foi transmitido exaustivamente em todas as TVs. Os chavistas ficavam exultantes com aquilo: é um governo do povo, que defende o povo e arrota na cara dos aristocratas.
Mas não era só de excentricidades e de folclore que vivia o Comandante. Ele acreditava estar à frente de uma missão: terminar a revolução iniciada por Simon Bolívar. Para isso, apenas um mandato como presidente era insuficiente, por isso um dos seus primeiros passos foi mudar a constituição para aumentar seu mandato de cinco para seis anos. Em 2003, outro problema enfrentado por Chávez foi um abaixo-assinado organizado pela oposição para acionar um referendo revogatório. Os organizadores coletaram três milhões de assinaturas, mas o Conselho Nacional Eleitoral disse que o abaixo-assinado não era válido, e precisaria ser repetido. Isso deu tempo a Chávez, que assim se pronunciou certo dia:
“Quem assinar contra Chávez ficará registrado na história, porque terá de dar nome, sobrenome, identidade e impressão digital”.
Isso acabou se concretizando, porque um jovem especialista em tecnologia da informação recebeu um arquivo com a lista, contendo três milhões de nomes. Ele publicou a lista em seu site, alegando que o objetivo era impedir que a oposição inventasse signatários. Mas ali fora criada “la lista Tascón”. Tudo que fosse ser feito na Venezuela – contratar uma empresa, conseguir um emprego, uma consulta médica, uma promoção – passava pela consulta da lista. O próprio Chávez chegou ao ponto de convidar o autor da lista para seu programa na TV e perguntar a ele, com fingido ar de ansiedade:
“Eu não apareço na sua lista, certo?”
Mais uma vez preciso voltar às prefeituras do interior nordestino. De todas as práticas nefastas que desrespeitam a impessoalidade, moralidade, legalidade, essa é uma das piores. E ainda existe em larga escala em muitos municípios. Não há exatamente uma lista, mas numa cidade pequena todos sabem em quem cada um votou. E isso determina quem vai ser contratado, quem consegue vaga num carro para a capital, quem vai fornecer para a prefeitura, quem – em caso de servidores concursados – vai dar aula na escola mais distante possível. Pensar nisso sendo feito em escala nacional, com dados sendo conferidos numa lista a cada contratação é um pouco demais.
Outra característica dos municípios do interior nordestino é o uso da máquina pública para compra de votos. Claro, isso não é exclusividade desse grupo, mas por aqui compra-se votos com telhas, com areia, com conserto de motos e até com dinheiro. Em 2008 Chávez perdeu um referendo para tentar garantir a possibilidade de reeleição em 2012. Em 2009 ele partiu para o ataque novamente, porque não conseguia imaginar o chavismo sem Chávez. Nas palavras de Rory Carroll:
“A ‘máquina vermelha’ mudou de marcha e acelerou fundo. Pelotões de camisas-vermelhas distribuíam gratuitamente colchões, ventiladores, geladeiras e fogões. E distribuíam folhetos com dez razões para votar sim. Número um: ‘Chávez nos ama, e amor se paga com amor’. Número dois: ‘Chávez é incapaz de nos fazer mal’”.
Ele ganhou o referendo e prometeu ser presidente até 2030.
O jornalista britânico apresenta diversos painéis que compunham o cenário venezuelano nos anos de Chávez. Analisa a economia, sustentada pelo petróleo e praticamente assassinada pela política de Chávez, que gerava enorme inflação, a maior da América do Sul. Analisa os problemas energéticos, a falta de investimento em infraestrutura, o problema das indústrias venezuelanas, a corrupção, que assolava o país, a saúde, completamente sucateada, a ponto de na porta dos hospitais, ambulantes venderem bandagens, toalhas, rolos de papel higiênico e lençóis. Mas o maior problema interno da Venezuela era mesmo a violência.
“A revolução herdou graves problemas sociais e os tornou piores. Em 1998, um ano antes de Chávez assumir o governo, houve 4.500 assassinatos, um índice per capita sombrio, o equivalente ao de grande parte da América Latina. Uma década depois, o número mais do que triplicara, chegando a dezessete mil ocorrências por ano, o que tornava a Venezuela mais perigosa que o Iraque e fazia de Caracas uma das cidades mais mortais da Terra. Calculava0se que havia oito vezes mais homicídios lá do que em Bogotá, capital da Colômbia. Com menos de 1% de casos solucionados, tratava-se de um bom lugar onde cometer assassinatos. Os sequestros, raríssimos no passado, tornaram-se uma indústria, com uma estimativa de sete mil casos por ano”.
Hugo Chávez era um homem de contradições. Queria se eternizar no poder, não escondia isso de ninguém, mas queria fazê-lo sob a égide da democracia, nem que para isso tivesse que se utilizar de recursos que não poderiam jamais ser chamado de democráticos, como revogar licenças de redes de televisão da oposição e prender inimigos sem que tivessem direito a julgamento. Na verdade, o direito, em teoria, existia, mas como tudo era manipulado pelo Comandante, gente como a juíza María Afiuni, que concedeu liberdade a um inimigo de Chávez que estava preso há bastante tempo, ficava na cadeia sem a menor perspectiva sequer do julgamento. Estranhamento, apesar de estar na cadeia, permitiam que ela até tivesse um smartphone e uma conta no Twitter, que ela atualizava toda hora, atraindo milhares de seguidores.
Os anos de Chávez no poder não foram tranquilos como ele fazia parecer. Ele não era uma quase unanimidade como ele fazia parecer.
“Um grupo de defesa de direitos humanos, Provea, contou 1.763 demonstrações [de protesto] por todo o país em 2008, saltando para 3.297 em 2009, ficando em 3.114 em 2010 e aproximando-se de 4 mil em 2011”.
O maior recurso de Chávez se mostrava eficiente nesses momentos, ao menos para manter oficialmente um status de calmaria. Ele era perito em contar histórias, diz Rory Carroll. Enfrentavam uma crise energética terrível? Ele ia à TV falar como o capitalismo destrói os recursos naturais e provoca a seca. Ia à TV conclamar os venezuelanos a tomar banhos de não mais de três minutos. Ia à TV dizer que a culpa era das indústrias, as maiores consumidoras de energia.
Há manifestações nas ruas? Ele entra em cadeia nacional para mascarar a transmissão das redes de oposição e fala da inauguração de casas populares, ou fala do maquinário recém-adquirido junto à China.
Chávez não só reescreveu livros de história, alterando fatos, datas, criando heróis. Ele mudou até a própria história, inventando uma origem miserável que não era verdade. Não só isso, ele se especializou em reescrever a história em tempo real, muitas vezes por meio de pequenas e grandes distrações. Você sabia, por exemplo, que Chávez alterou o fuso horário da Venezuela em meia hora?
Um homem cheio de talentos e de dons, conclui Rory Carroll, mas que desperdiçou uma excelente oportunidade de fazer muito pela Venezuela, deixando o país numa situação bem pior que catorze anos atrás.
Comandante é um livro sedutor, assim como seu protagonista. Você pode até discordar do que escreveu Rory Carroll e achar que Chávez foi um verdadeiro herói. Mas ainda assim acredito que a leitura vale muito a pena. Para nós, brasileiros, é impossível não refletir, preocupadamente, que apesar de termos uma democracia mais sólida, não estamos livres de tipos como Hugo Chávez.