Ramiro.ag 18/02/2024
"Não tenho a menor necessidade de constranger meus instintos a fim de agradar a um criador."
"Foi da natureza que os recebi, e eu a irritaria se a eles resistisse; se me deu os maus, é que, a seu ver, tornavam-se assim necessários."
Eu descreveria e experiência de ler este livro da seguinte forma: cada página que passava a sensação era de que eu estava cometendo um crime só de LER a história, eu fiquei esperando a polícia federal invadir minha casa a qualquer momento, e iria com eles sem nenhuma relutância achando merecido.
Mas enfim, não vou entrar em detalhes na narrativa absurda, grotesca e vil, caso alguém se interesse em ler vai descobrir por conta própria, os abismos que ela esconde. Mas avisado está, inclusive o autor mesmo avisa várias vezes sobre a natureza da história, então o leitor se arrisca pela própria sorte, ou pela curiosidade, que foi meu caso.
"E agora, amigo leitor, prepare o seu coração e o seu espírito para o relato mais impuro que jamais foi feito desde que o mundo existe, pois livro semelhante não se encontra nem entre os antigos nem entre os modernos."
Apesar dos pesares, o livro em si tem muito valor, sobretudo no domínio da psicologia, de onde emerge o termo "sadismo", em alusão à obra de Sade. Esta narrativa, assim como outras do mesmo autor, serão utilizadas como ferramentas para a exploração das profundezas da mente humana, visando a compreensão e classificação de seus distúrbios e perversidades, particularmente os de natureza sexual. No contexto de "120 Dias de Sodoma", tais atos repugnantes não são encarados como desvios morais, mas como impulsos naturais que não devem ser subjugados; são analisados e debatidos com sobriedade e gravidade, pelos próprios personagens, os quatro libertinos, adornados por um viés filosófico.
"Não há nada fundamentalmente bom e nada fundamentalmente mau; tudo é relativo, dependendo de nossos costumes, opiniões e preconceitos."
Sinceramente, não acho que tudo que foi narrado aqui tenha sido apenas fruto da imaginação de Sade, tanto pela rapidez com que foi escrito, quanto pelos minuciosos detalhes, sugerem que o autor tenha vivenciado grande parte dos eventos, ou ao menos tenha tido acesso a relatos verídicos. Essa constatação toca em um ponto sensível e crucial, levando-nos a uma profunda reflexão e utilizando a obra como um espelho das muitas atrocidades perpetradas pelo homem ao longo da história, com destaque para aquelas ocorridas dentro das Igrejas. As práticas mais perversas frequentemente se ocultavam por trás de uma fachada moralista.
"Mas, quando uma sociedade inteira comete as mesmas faltas, é corrente perdoá-las."
Muitos assuntos delicados são abordados de maneira crua aqui: a fragilidade dos laços familiares, os abismos do vício, a trivialidade da existência, o prazer como eixo condutor das ações humanas, os conceitos de moralidade e imoralidade, a estratificação social e o tédio da alma.
"Esse fastio que então sentimos é apenas o sentimento de uma alma saciada à qual a felicidade desagrada porque acaba de cansá-la"
É assustador ler esse livro e ver que, aos poucos, você acaba se acostumando com tudo que acontece. O que provocou uma reação visceral em um primeiro encontro, ao acontecer muitas outras vezes, não te causa o mesmo sentimento, e muitas vezes passa como se não fosse nada, como algo trivial. Esse fenômeno, quando você para para pensar, causa arrepio e medo, já que é descrito no livro e usado como base principal.
"Um excesso leva a outro; a imaginação, sempre insaciável, logo nos leva à última etapa, e, como ela fez esse percurso endurecendo o coração, este, mal chega ao fim, já não tem as virtudes de outrora, já não reconhece senão uma. Acostumado a coisas mais profundas, ele se livra prontamente das primeiras impressões frouxas e sem doçura que o inebriaram até então, e, como sente que a infâmia e a desonra serão a sequência de seus novos gestos, para já não ter de temê-las começa a se familiarizar com elas. Mal as afaga, já as ama, porque têm a ver com a natureza de suas novas conquistas, e ele já não muda."
Enfim, não é uma leitura fácil, revira o estômago e te faz querer parar em muitos momentos, é a crueldade desenfreada, a busca pelo prazer sem ética, é uma incursão em território proibido. Reconheço a importância do livro, mas não é uma leitura que vou recomendar a ninguém, e quando perguntarem vou me fazer de desentendida e fingir que nunca li.
"Faça o mesmo aqui: escolha o que quiser e deixe o resto, sem reclamar desse resto só porque não tem o dom de agradar-lhe. Pense que agradará a outros, e seja filósofo."