Lucas 23/04/2022
Alexandre Dumas e seu dinamismo narrativo incomparável: Quem o lê uma vez, torna-se suspeito para falar dele e de sua obra
Poucas histórias sobreviveram e envelheceram tão bem quanto às derivadas d'Os Três Mosqueteiros. Seja em filmes, produções seriadas e até mesmo histórias em quadrinhos, as aventuras dos três protagonistas (que na verdade eram quatro) criados pelo francês Alexandre Dumas (1802-1870) permanecem em constante estado de vivacidade desde o seu lançamento em 1844. Tal popularidade recebeu novo estímulo no Brasil quando em 2010 a Editora Zahar lançou a versão integral, atualizada e (muito) caprichada da obra-prima de Dumas (segundo ele mesmo), a qual funciona perfeitamente como um livro isolado, estruturalmente fechado.
Mas acontece que Os Três Mosqueteiros foi concebido apenas como o começo de uma jornada mais abrangente. E Dumas, que era dono de um robusto tino comercial, já no ano seguinte, em 1845, iniciou a publicação seriada de Vinte Anos Depois, a continuação das aventuras dos tais mosqueteiros, que eram guardas da realeza da França. Como o nome sugere, esta obra (que no Brasil recebeu o mesmo e sensacional tratamento estético e estrutural da Editora Zahar com a edição lançada em 2017) narra as aventuras e desventuras de Athos, Porthos, Aramis e d'Artagnan duas décadas após o término narrativo d'Os Três Mosqueteiros.
Se este funciona muito bem como um livro independente, o mesmo não pode ser dito ao leitor que recebeu em seu colo Vinte Anos Depois: este é um livro que precisa sim da leitura do seu antecessor para que se atinja o alto e sempre esperado nível de entretenimento simbolizado pela escrita de Dumas. São várias as passagens e personagens secundários referenciados no primeiro livro, as quais aumentam muito o fascínio do leitor quando se repetem em Vinte Anos Depois (apesar da inegável ajuda das centenas de notas de rodapé presentes na versão editada pela Zahar, a efetiva leitura d'Os Três Mosqueteiros torna esse encanto ainda mais impactante).
Ao ler aquele livro que melhor condensa o estilo inconfundível de Alexandre Dumas, o leitor terá diante de si talvez a melhor obra do estilo capa e espada já escrita: Os Três Mosqueteiros explora como nenhum outro livro a cinematografia inteligente, os diálogos diretos e incisivos, a ação ora desenfreada ora pausada e um derramamento absurdo de mistérios, marcados por identidades trocadas, envenenamentos e vilões (desmascarados e ocultos). E tudo isso coroado com uma história de amizade singular entre quatro personagens com personalidades tão distintas quanto as dos protagonistas.
Tal solidez narrativa é construída não apenas com intensa criatividade, mas também explorando a história real da França e de boa parte da Europa, algo que se mantém com força aqui. Isso porque Vinte Anos Depois se passa durante a Guerra Franco-Espanhola (1635-1659), mais precisamente entre os anos de 1648 e 1649. O reino francês duelava com a Espanha por territórios, as quais acabaram definindo as atuais delimitações fronteiriças entre estes dois países. Entretanto, a obra de Dumas amplia seu escopo para praticamente toda a faixa oeste da Europa, a qual estava num barril de pólvora em decorrência da chamada Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma miscelânea de conflitos que envolveram praticamente todos os reinos (países) do que atualmente se entende por Europa Ocidental.
Desse modo, e seguindo uma tônica d'Os Três Mosqueteiros, Dumas insere fatos e personagens reais cujas interações guiam a narrativa. Na França, têm-se o pequeno rei Luís XIV (1638-1715), um menino de nove anos e a sua mãe, a espanhola Ana de Áustria (1601-1666), que era rainha regente da França. Entretanto, o "cérebro" do reino era o cardeal Jules de Mazarino (1602-1661), sucessor de Richelieu (1585-1642) e antagonista mais conhecido d'Os Três Mosqueteiros. Num parco resumo, o reino francês, para se sustentar na guerra com os espanhóis, usava do aumento de tributos junto à nobreza e burguesia, o que trazia ao idealizador dessa política (Mazarino) muita impopularidade. Deriva dessa necessidade de proteção política e até mesmo física a ideia de os quatro mosqueteiros reunirem-se novamente.
Nessa toada, d'Artagnan, o único dos quatro amigos que permanecia no grupo dos mosqueteiros, parte em expedição para encontrar seus companheiros, o que gera inúmeras cenas memoráveis nas primeiras 150 páginas da obra. Entretanto, este distanciamento temporal e até mesmo geográfico impede que os interesses se encaixem perfeitamente... Nada que uma amizade tão forte seja afetada e a forma com que esse "compromisso" é posteriormente renovado é digna de aplausos.
Adicionalmente, numa continuação d'Os Três Mosqueteiros tão robusta (são quase 800 páginas da já citada edição da Zahar), é evidente que não poderia se passar sem ação, a qual deriva do passado dos quatro amigos. E é aí que surge a principal razão para que o leitor leia Os Três Mosqueteiros antes, já que num passar de olhos nomes bem conhecidos (e horripilantes) surgem e enchem de incertezas um cenário aparentemente monótono. Associe isso a um intrincado jogo de interesses envolvendo o reino francês e os ingleses (que estavam em guerra civil), em paralelo ao supracitado confronto com os espanhóis e está pronto o cenário para um livro que mistura ação, diplomacia e política com as já imaginadas aventuras dos protagonistas.
Entretanto, se a leitura de Os Três Mosqueteiros é obrigatória para a experiência de Vinte Anos Depois, exigindo do leitor um compromisso além daquele propriamente dito relacionado à leitura da obra em si, o mesmo não pode ser dito quanto à construção de uma prévia bagagem histórica para o entendimento destas referências históricas reais. Isso pode ser alcançado durante a leitura, já que o trabalho de tradução de Jorge Bastos é impecável por oferecer, através das já citadas notas de rodapé, os esclarecimentos devidos a diversas passagens e personagens reais apresentados pela obra. Isso não só torna a leitura mais rica como também desperta no leitor mais curioso várias descobertas, caso ele vá a fundo nestes comentários.
Falar da edição da Zahar e de aspectos gerais que cercam Vinte Anos Depois é o suficiente para que o futuro leitor se encante com o livro que possui diante de si. O que cabe agora a ser destacado é, na minha visão particular, dois pontos que a obra aborda e que possuem uma robusta relação com a atualidade, provando que a literatura é algo que conversa com os séculos e sobrevive ao tempo. O primeiro destes pontos reside no poder das escolhas e de julgamentos, as quais podem refletir perenemente na alma de quem as (os) executa. Em Os Três Mosqueteiros, os protagonistas tomam uma atitude drástica e necessária para as respectivas sobrevivências... Mas seriam eles as pessoas mais adequadas a serem executores dessa medida? Como conviver com esse fardo, que no início se configura como alívio, mas que vai se metamorfoseando em culpa? Desse modo, Vinte Anos Depois oferece vários momentos de discussão sobre livre-arbítrio, desígnios, destinos, etc., derivados de um acontecimento nefasto presente na obra anterior, mas que por lá (sabiamente) não foi plenamente explorado.
Outro ponto, esse ainda mais incisivo à realidade de hoje, refere-se à impotência de pessoas comuns diante de governantes e asseclas com fervorosas ideologias individuais, as quais infelizmente são transmitidas a seus correligionários. Em Vinte Anos Depois, o leitor verá que até mesmo as amizades mais sólidas podem ser abaladas por posições políticas divergentes e também perceberá a inutilidade de tais abalos: não só porque são indecorosos à boa convivência, a qual é um poderoso artifício de uma boa amizade, mas principalmente pela efemeridade de governantes, cujas ideologias oram sucumbem, ora se revigoram. As amizades e os laços familiares de amor e respeito devem (riam) sobreviver diante da insignificância de algo tão transitório e os quatro mosqueteiros passam uma mensagem muito clara diante de todo esse cenário assustadoramente atual.
Seja repercutindo atualmente, seja construindo uma obra com um pano de fundo histórico e secular, Alexandre Dumas e sua "equipe" de montagem e revisão (a qual ajudava-lhe nos apontamentos históricos e narrativos) oferecem em Vinte Anos Depois uma obra que está à altura de sua antecessora. Rever as cavalgadas, combates, cenas de coragem, peripécias e engenhos de Athos, Porthos, Aramis e d'Artagnan, juntamente com novos e incríveis personagens, é um deleite ao leitor amante desse tipo de leitura. Vinte Anos Depois é viciante, de leitura muito ágil e que oferecerá ao futuro leitor uma experiência de entretenimento única, como são todas as que trazem o selo Alexandre Dumas de qualidade literária.