Leonardo 09/07/2012
Muitas razões para ler, todas elas válidas
Disponível em http://catalisecritica.wordpress.com/
Desde que li O Fantasma da Infância eu aguardava ansiosamente a oportunidade de ler outra obra de Cristovão Tezza, respeitadíssimo escritor brasileiro. Seu livro mais premiado é O filho eterno, em que ele relata sua experiência de ter um filho portador de Síndrome de Down. Finalmente pus as mãos nele e é possível compreender o porquê de tantos prêmios. Cristovão Tezza entrega ao leitor sua alma. Impossível ler O filho eterno e não se lembrar das Confissões de Santo Agostinho, preservando, naturalmente, cada um em seu devido lugar.
Tezza não é o primeiro pai de uma criança com Down, qualquer um sabe disso. Muito certamente não foi ele o pai que passou por mais momentos difíceis ou que viveu mais aventuras. O que ele narra não entra no campo dos fatos extraordinários. Há duas diferenças, contudo, na sua experiência de pai, que tornam a leitura desse livro tão pungente: primeiro, Tezza é um grande escritor, e segundo, a honestidade de seu relato é desconcertante.
O livro é narrado numa terceira pessoa disfarçada, aquilo que se costuma chamar de discurso indireto livre: o autor descreve as ações dos personagens, sempre do ponto de vista do personagem principal, mas também se imiscui em suas emoções e pensamentos. E o personagem principal é um homem sem nome: um escritor que de envergonha por muito tempo de preencher fichas e colocar “escritor” como ocupação; que escreveu poesias que julga péssimas; que se sente transparente demais; que é tímido; que se sente culpado por não saber como lidar com seu filho com Síndrome de Down.
“A porta se abre e uma jovem médica residente, gentil, os recebe com um sorriso – olha com um carinho maternal para a criança, que dorme suave no colo da mãe. É preciso preencher alguns papéis, ela diz, em tom amigável. Ele se sente um animal chucro, puxando o pescoço para se livrar do freio na boca, aquela prisão incômoda que o arrasta para trás: responder a perguntas idiotas diante de uma mesa, há sempre uma invasão de intimidade – o que você faz, do que você vive, quem você pensa que é -, e aquela irritante compreensão humanista dos que têm poder mas o usam com moderação. Aceite a regra do jogo, é o que eles dizem.”
Sem autoindulgência, Tezza rasga seu coração com confissões tocantes. Não, ele não quer levar ninguém às lágrimas, nem vender mais livros ao incluir declarações polêmicas. A impressão que tive é de que O Filho Eterno é o mea culpa de um pai que ama muito seu filho, mesmo que ao longo de todo o livro não tenha precisado escrever isso uma única vez.
O pensamento que lhe veio quando soube da condição de seu filho pareceria cruel se não fosse tão verdadeiro e humano. As falhas do pai-escritor são relatadas lado a lado com sua luta diária, vivendo sempre o presente, nem passado, nem futuro, enxergando dez metros à frente.
Enquanto narra esses fatos, Tezza mostra que o livro também é sobre ele ao relembrar fatos de sua vida, desde suas experiências de trabalho e roubo na Alemanha, suas aventuras de hippie, sucessivas rejeições de seus originais, as cervejas com os amigos, o primeiro livro publicado.
Escrito num ritmo irresistível, o livro acompanha os vinte anos de seu filho sem que você perceba como o tempo vai passando. É quase impossível parar de ler.
Abaixo uma passagem em que Tezza, crítico e autocrítico, analisa o futebol, uma das paixões de seu filho eterno:
“Nesse universo repetitivo, o futebol foi lentamente se transformando num estímulo poderoso. O futebol, esse nada que preenche o mundo, o pai imagina, logo o fotebol, uma instituição de importância quase superior à da ONU e que ao mesmo tempo congrega em sua cartolagem universal algumas das figuras mais corruptas e vorazes do mundo inteiro, um esporte que onde quer que se estabeleça é sinônimo de falcatrua, transformado num negócio gigantesco e tentacular, criador de mitos de areia, a mais poderosa máquina de rodar dinheiro e ocupar tempo jamais inventada, a derrota final das inquietações do dasein de Heidegger, o triunfo definitivo das massas, o maior circo de todos os tempos, vastas emoções sobre coisa alguma – o pai vai se irritando sempre que pensa, escravizado também ele àquela dança defeituosa que jamais completa mais de cinco lances seguidos sem um erro, um esporte que sequer tem arbitragem minimamente honesta até mesmo por impossibilidade do olhar dos juízes de dar conta do que acontece (em todos os jogos do mundo acontecem falhas grotescas), e no entanto urramos em torno dele, a alma virada do avesso – pois o futebol, essa irresistível coisa nenhuma, passou lentamente a ser para o Felipe uma referência de sua maturidade possível.”
O poder de observação de Tezza acrescenta ao livro, como demonstrado no trecho acima, um sabor próprio. Pensando nas limitações do seu filho, por exemplo, ele diz que o menino jamais seria capaz de formular uma frase na voz passiva. Pequenas informações como essa que dão vida a uma história, que dão também valor literário à narrativa.
É possível apontar diversas motivações para ler O Filho Eterno: qualquer uma delas faz a leitura valer a pena.