Gustota 16/12/2014Graça Infinita ainda vai te salvar, se você der uma chance ao calhamaçoEste resumo é pra quem conseguiu encarar as 1136 páginas e leu corajosamente as 388 citações (algumas com mais de dez páginas) e que basicamente percebeu que a grande maioria delas trata da posologia de diversos medicamentos comercializados em qualquer farmácia e cuja variação de quantidade pode simplesmente transformá-los em poderosas drogas. Mas porra, é exatamente disso que se trata. Tá gigantão e cheio de spoliers, mas sente só:
Dou outro exemplo: “O êxtase de Santa Tereza”, de Belinni. Uma escultura clássica onde a santa está envergando toda numa postura e numa expressão facial que muito bem pode ser tanto um êxtase orgástico quanto uma agonia pavorosa. É exatamente esse o ponto central do livro: nossa fragilidade em estabelecer limites, responsabilidades, empatia com os outros. E então é aí que aquilo que criamos para nos ajudar, nos curar, nos entreter se torna não um caminho mas um vício, uma obsessão.
Há diversos momentos no livro em que a busca por conforto, felicidade, entretenimento, amor, saúde, sucesso ou mesmo fuga e ironia se tornam prisões do espírito, a começar pelo entretenimento absoluto do título. Graça Infinita é uma citação de Hamlet, e também um filme filmado de tal e tal forma pelo excêntrico James O. Incandenza que é tão fascinante, mas tão fascinante que uma vez assistido, torna o espectador um zumbi dependente incapaz de fazer qualquer coisa que não seja assistir ininterruptamente esse filme.
Agora imagine um Estados Unidos contemporâneo e (mais) distópico, onde o Canadá se tornou um lixão radioativo com manadas enlouquecidas de mutantes, bebês deformados gigantes e crianças nascendo sem crânio nas redondezas e não obstante esse mesmo Canadá é obrigado a aderir à uma aliança humilhante com os americanos pra não terem que lidar sozinhos com esse lixo (que caralho, só existe pelo padrão de vida vergonhosamente dispendioso dos americanos). Imagine também que grupos separatistas sabem da existência desse vídeo e da obsessão americana com entretenimento... Sim, é disso que se trata, mas é só uma parte da história.
Longe dessas complexas tramas geopolíticas, nos arredores de Boston, dois lugares próximos, mas socialmente distantes seguem com suas rotinas: a Escola de Tênis de Enfield, onde os winners, jovem promissores superdotados, privilegiados e talentosos desenvolvem suas capacidades “tenísticas” em circuitos pelos Estados Unidos e pelo mundo ou uma carreira acadêmica, e a Clínica de Recuperação Ennet, onde os losers, viciados (em sua maioria pobres, negros, white trash) buscam se segurar nas poucas esperanças que lhes restam. Mundos tão diferentes, onde todos são vítimas de uma mesma cultura de sucesso a qualquer custo, dependência da felicidade (a qualquer preço), exclusão daqueles que falham, individualismo extremado.
Estando a prole do excêntrico J.O. Incandenza na escola de tênis (que ele mesmo fundou) e a misteriosa Joelle Van Dyne, a atriz principal de Graça infinita, internada na Clínica Ennet, aqueles que buscam derrubar o governo de ONAN irão unir esses dois mundos.
INFLUÊNCIAS
Em termos de influências, Graça Infinita é descendente direto de dois pais: Salinger e Thomas Pynchon. Podemos ver na família Incandenza todos os trejeitos dos gênios da família Glass de Salinger, com pessoas incrivelmente inteligentes e talentosas, mas emocionalmente instáveis, gênios suicidas e garotos precoces. As falas ao telefone de Orin e de Hall me lembraram na hora as conversas telefonísticas do livro “Franny & Zooey”, com adolescentes abonados irritantemente geniozinhos e pensando ser mais espertos que os adultos que os cercam. Do Pynchon, o gosto por calhamaços verborrágicos cheios de referências alucinadas a tudo que forma a cultura americana, de livros noir e quadrinhos a física quântica e química avançada. Eu diria que o bom DFW faz uma tabelinha Salinger Pynchon comum jeitão meio “Geração Prozac”, bem climão da época em que foi escrito. Outra referência que não dá pra não comparar é a do “Versos Satânicos” do Rushdie, pela verborragia intensa, sátira urbana social, total falta de pudores e por uma espécie de realismo fantástico pós-moderno que trata toda confusão alienante da modernidade urbana com aumentativos. Graça Infinita está para os States dos anos noventa o que Versos Satânicos estava para a Inglaterra dos anos oitenta, e coloque aí gurus de fitness que se alimentam lambendo saliva de malhação, cadeirantes terroristas, príncipes árabes que só se alimentam de chocolate, tenistas que jogam com uma arma na cabeça como forma de sobrevivência esportiva,tenistas siamesas que obviamente só podem jogar de dupla, agentes federais crossdressers, pretty much essas coisas.Tem outras trocentas porradas de referências, tipo o Ballard ou o DeLillo, mas não vou me alongar muito nisso.
POLITICAMENTE INCORRETO, ANTI-IRÔNICO E ESCATOLÓGICO
É curioso pensar que o autor é daqueles professores da língua inglesa super ligados com os movimentos de direitos civis, gramática não ofensiva e essas coisas, porque a obra transborda de toda espécie de linguajar politicamente incorreto, termos escrotões pra minorias, piadas com deficientes, terminologias ilimitadas para órgãos genitais, essas coisitas. Muitas vezes isso vai da boca dos personagens da Ennet uns pros outros, outras vezes dos privilegiados alunos da escola de tênis, outras simplesmente do narrador onisciente. Não deixa de dar aquela sensação de provocação, mas ao mesmo tempo meio que me deixou com a impressão de que o cara tá falando “de branco nerd meio esperto pra branco nerd meio esperto”, meio como aquelas comédias politicamente incorretas que pipocam na TV fechada, suavizadas na forma de animação e zoando tudo que é minoria. Mas aqui a coisa tem mais contexto, podem confiar.
Agora a escatologia é um show à parte, e coloca o senhor Chuck Palahniuk no seu devido lugar de escritor merdinha que usa e abusa da escatologia pra ganhar ibope. Aqui, o senhor DFW ensina como usar escatologia com boa escrita e sem precisar chocar gratuitamente. Tem de tudo, desde minuciosas descrições de sistemas digestórios e excretores que funcionam de formas bizarras, a descrição de partos grotescos natimortos, acidentes desfigurantes, amputações grotescas, torturas animais com requintes de crueldade, abusos sexuais medonhos, revertérios terríveis com as drogas... Mas reitero que nada é dado de forma assim gratuita e o sentido do livro passa longe de simplesmente querer chocar datilograficamente. Curioso é que esse é um dos poucos livros onde deficientes (ao menos a meu ver) são tratados com um respeito de autonomia autoral, e não com uma hipócrita condescendência.
Nisso podemos colocar aquele que pra mim é o melhor personagem do livro, o Mario Incandenza. Filho do meio do clã Incandenza, Mário nasce num parto prematuro terrível e possui uma série de deformidades congênitas que o obrigam a usar um colete especial pra andar. Mario, entretanto, possui uma relativa inteligência e imensa afetividade, sendo o coração da trama e capaz de engrandecer todos os outros personagens com seu carinho e amizade para com eles. Seu maior defeito, que se revela também sua maior qualidade, é sua incapacidade de ser cínico e irônico. Sempre levando os personagens ao pé da letra e sempre buscando ver o melhor das pessoas, Mario irradia algo que para o autor vem se perdendo, que é nossa sinceridade emocional, que fazemos de tudo para esconder numa casca blasé irônica e cínica. Seus talentosos e perfeitos irmãos, Hal e Orin, são incapazes de agir assim. Hal é cínico e inseguro, além de tratar a todos com pouca seriedade. Orin é um mentiroso crônico e egoísta, que trata as mulheres (que ele chama de cobaias) como produtos descartáveis. A clínica Ennet também é um lugar onde o sarcasmo e a crueldade para com o próximo não entram, regras da casa.
NÃO TEM UM FINAL ASSIM TÃOOOOO SATISFATÓRIO, MAS É DESSES LIVROS QUE PODEM SALVAR SUA VIDA
Olha, não vou mentir que o final não é o que se espera, é todo fragmentado e dá um enfoque que pra mim pareceu desnecessário nuns flashbacks de outro personagem central, o Don Gately que era um desses brutamontes de lares desfeitos que você sabe que está destinado a uma vida de crime, mas que acaba redescobrindo sua razão de existir em pequenos lampejos cotidianos trabalhando na clínica Ennet. E como o início do livro é o post-ending, dá pra suspeitar que o Hal, o Gately e a Joelle, e até aquele moleque do John Wayne se juntaram e foram atrás da cópia máster do Graça Infinita. Mas aí já é especulação.
O que importa é que, no final das contas, é um tipo de livro que tem todo um palavreado verborrágico e uns lances que chocam, mas que falam no fundo como atalhos pra felicidade são assim armadilhas quando se tornam fins e não meios. Que as coisas simples da vida valem muito mais que elaboradas buscas por sucesso e proficiência. Que criamos uma série de escudos para lidar com os outros, e às vezes achamos que nos bastamos dentro dessas bolhas de segurança. E que meio que existe esse lance de luz no fim do túnel e que não importa o quão baixo você desceu, sempre dá pra voltar pra cima. É quase possível ouvir o autor te dando esses conselhos em pelo menos dois momentos: num longo monólogo em que o narrador analisa tudo que se aprende numa clínica de reabilitação e num momento em que ele entra na mente do Mario e passa a ver através de sua perspectiva, o melhor de gente cheia de neurastenias e valores ocos.
Se você pensar que esse é um detox físico e emocional do David Foster Wallace, é um puta convite a entender seu jeito de ver o mundo e aprender com isso.