Leonardo 22/04/2014
Não, não é sobre a infância de Jesus
Este é o primeiro livro que leio do exaltado escritor sul-africano J. M. Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2003.
É o seu mais novo romance, publicado em 2013. Apesar do título, não conta a história da infância de Jesus Cristo, mas é uma espécie de versão distópica do que poderia ter sido a infância de Jesus em outro tempo e em outro lugar.
Um homem chega de navio a um país não nomeado, uma terra estrangeira, acompanhado de um menino de cerca de cinco anos que conheceu no navio e que tenta encontrar sua mãe. Não se sabe de onde eles vieram. De fato, sequer se sabe onde eles estão agora, apenas o nome da cidade onde eles morarão: Novilla. Eles têm que esquecer seu passado, como aliás todos que chegam a este país, onde devem falar espanhol (aprenderam o básico num curso rápido antes de chegarem a Novilla e ainda sentem muita dificuldade para se comunicar neste idioma).
Na nova cidade, após alguma dificuldade, recebe um lugar para morar e um emprego, como estivador. Percebe-se claramente que neste novo país vigora um governo totalitário, já que a presença do estado é constante: ele fornece casas e estabelece onde cada um vai morar; locais de trabalho; cursos de formação, tais como filosofia, desenho e história; regras rígidas acerca dos direitos de ir e vir, da história (o passado definitivamente deve ficar para trás). Há até mesmo casas oficiais para os homens aliviarem suas tensões (leia-se prostíbulos institucionais). O amor é uma ideia em desuso, assim como atração sexual e sentimentos mais intensos. Todos são educados, polidos, camaradas. Impera a boa vontade.
Enquanto acostuma-se a esta nova realidade, este homem, que não tem de fato lembranças do lugar de onde veio, tem “lembranças de lembranças”, e inquieta-se com a artificialidade daquele ambiente. Põe-se a questionar tudo: por que eles têm que trabalhar como burros de carga levando tantos sacos de trigo o dia todo do navio para os depósitos se um guindaste resolveria o problema de maneira muito mais eficiente? Por que as mulheres parecem adormecidas quando se fala de amor e de sexo? Por que viver com tanto ascetismo, tanta frugalidade (eles são orientados a contentar-se com pouca comida, a despeito de aparentemente não faltar trigo) e não dar vazão aos apetites?
“Então por que prega esse ascetismo? Diz que temos de dominar a fome, de deixar o cachorro interno a pão e água. Por quê? Qual o problema com a fome? Para que servem os apetites da gente senão para mostrar o que precisamos? SE a gente não tivesse apetites, desejos, como ia viver?”
Parece-lhe uma boa questão, uma questão séria, que poderia perturbar até a freira mais estudada.
A resposta dela vem bem fácil, tão fácil e em voz tão baixa, como se fosse para o menino não ouvir, que por um momento ele se equivoca: “E no seu caso, para onde seus desejos levam o senhor?”.
“Sabe o que mais me surpreende neste país?” Um tom ousado está se infiltrando em sua fala; seria mais sensato parar, mas ele não para. “Que seja tão manso. Todo mundo que eu encontro é tão bom, tão gentil, tão bem-intencionado. Ninguém xinga, ninguém fica bravo. Ninguém fica bêbado. Ninguém nem levanta a voz. Vivem num regime de pão, água e pasta de feijão e dizem que estão satisfeitos. Como pode ser, humanamente falando? Vocês estão mentindo, até para si mesmos?”
(…)
“O senhor está mesmo com raiva”, diz Ana.
“Não estou com raiva. Estou com fome! Me diga: o que tem de errado em satisfazer um desejo comum? Por que nossos impulsos, fomes e desejos normais precisam ser eliminados?”
As pessoas deste mundo parecem ter sofrido uma leve lobotomização. Vivem etéreas, alheias a quase tudo, bovinas.
“Álvaro não lida com ironia. Nem Elena. Elena é uma mulher inteligente, mas não vê nenhuma duplicidade no mundo, nenhuma diferença entre a aparência das coisas e as coisas em si. Uma mulher inteligente e uma mulher admirável também, que com os materiais mais exíguos – costura, lições de música, cuidados domésticos – construiu uma nova vida, uma vida à qual ela afirma – com justiça? – que não falta nada. É a mesma coisa com Álvaro e os estivadores: eles não têm nenhum anseio secreto que ele consiga detectar, nenhum desejo por outro tipo de vida.”
Enquanto enfrenta esses dilemas, Símon (todos neste novo país recebem um novo nome, e este é o nome do homem que acolheu a criança, que por sua vez recebeu o nome de David) procura a mãe do garoto. David, por outro lado, vai se revelando uma criança difícil. Extremamente inteligente, mas dona de uma lógica peculiar no trato com a linguagem e, especialmente, com os números. Tem problemas na escola e mostra-se firmemente preso a determinadas ideias que se distanciam da realidade daquela vida nova.
O livro todo parece uma grande metáfora. Ou uma grande parábola, para usar a linguagem bíblica, que, aliás, permeia todo o livro.
Símon e David (dois nomes bíblicos) chegam a uma terra estrangeira, como exilados, tais como José, Maria e o menino Jesus. Nesta nova terra eles certamente tiveram que aprender um novo idioma. Certamente também sentiram estranheza em relação aos costumes dali. Jesus, desde muito cedo, deve ter manifestado sinais da sua vocação (no livro, o menino David diz que pode curar e até mesmo ressuscitar as pessoas e animais). Vivendo como estrangeiro, em determinado momento Símon diz a David que ele (o menino) não teria onde repousar a cabeça, frase que o próprio Jesus disse de si. Noutro momento, um professor ordena que David escreva “Devo dizer a verdade”, ao que o garoto responde “Eu sou a verdade”. Ainda noutra ocasião, o menino escreve na areia da praia.
Não me constranjo ao dizer que tenho certeza de que não captei tudo que o autor quis dizer com este livro. Ele levanta muitos questionamentos, filosofa bastante, por meio dos personagens da história, a respeito dos anseios do ser humano, do significado da vida, da natureza das coisas. Por que esta história tão parecida e tão diferente da infância de Jesus? Por que a comparação? É uma crítica à religião?
A infância de Jesus não é narrada na Bíblia, com exceção de alguns episódios logo que ele nasceu (até a apresentação no templo) e do dia em que ele se perdeu de seus pais na volta de Jerusalém, já aos doze anos. Há um hiato de uns dez anos sobre o qual nada se sabe. Como José, Maria e o menino Jesus teriam passado estes anos no Egito? Que influência teve a cultura estrangeira sobre o futuro ministério de Jesus, que anunciaria a vida nova, algo que também é anunciado no livro de Coetzee?
O livro, enfim, provocou-me muitos questionamentos, e acredito que isto seja bom. Não é uma narrativa rasa, mas repleta de significados e mistérios, apresentada através de uma prosa simples e discreta. Penso ter sido uma boa introdução à obra de Coetzee, que pretendo conhecer mais.
Minha Avaliação:
4 estrelas em 5.
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