Luiz Pereira Júnior 21/01/2024
Olhando-se no espelho...
Se uma rosa é uma rosa é uma rosa, um clássico é um clássico é um clássico...
Durante séculos, muito já foi escrito sobre “Os contos de Cantuária”, de Geoffrey Chaucer, sendo possível encontrar milhares de resumos e milhões de páginas (tanto físicas quanto virtuais) sobre essa que é uma das mais importantes obras da literatura universal. Então, serei breve. Mas antes um aviso: li a edição da T. E. Queiroz, em prosa.
“Os contos de Cantuária” pode ser resumido assim: um grupo de peregrinos se encontra em uma taberna. O Estalajadeiro decide seguir com eles e oferece como prêmio um jantar para quem contar a melhor história durante o percurso, sob a condição de que ele será o único juiz, não aceitando quaisquer reclamações.
Assim, cada personagem conta uma história, de acordo com seu estrato social, com a sua visão de mundo e com o gênero ao qual pertence. Os personagens são arquétipos de um microcosmo representando toda (ou grande parte) da sociedade feudal (mas muito do que foi escrito muitas vezes alcança o universalismo e a atemporalidade). O Cavaleiro, o Moleiro, o Feitor, o Cozinheiro, o Magistrado, o Homem-do-Mar, a Prioresa, o Monge, o Padre da Freira, a Mulher de Bath, o Frade, o Beleguim, o Estudante, o Mercador, o Escudeiro, o Proprietário de Terras, o Médico, o Vendedor de Indulgências, a Outra Freira, o Criado do Cônego, o Provedor, o Pároco e o próprio Chaucer, cada um conta uma história, a seu próprio jeito, mas seguindo basicamente o mesmo padrão culto de linguagem (em que pesem as obscenidades e termos chulos de alguns personagens).
Diga-se também que em todos os contos sempre há citações e/ou narrações de outros autores, principalmente bíblicos, mitológicos e clássicos, como uma forma de dar embasamento à história narrada pelo personagem da vez. E essas justificativas acabam se entrelaçando às narrativas de uns e outros personagens, quando uma figura bíblica, por exemplo, é citada em um conto, sendo citada mais adiante em dois ou três contos para justificar a mesma ação de outra(s) personagem(ns).
A maioria dos contos versa sobre o casamento e as conflitantes relações entre os sexos (ou os gêneros, se preferir), tornando um caráter misógino em várias das histórias narradas, mas é bom lembrar que não se pode exigir o pensamento atual para personagens que são o retrato do pensamento de séculos atrás.
O mesmo acima dito se pode dizer em relação ao aspecto religioso, que permeia todos os contos. A religião é vista tanto como forma de corrupção quanto de redenção do ser humano (e isso já diz muito da época em que o livro foi escrito).
Lembrando “O Decameron”, de Giovanni Boccaccio, temos histórias que buscam o sublime (o do Cavaleiro), mas também textos francamente obscenos (o do Moleiro, cujos versos finais foram ditos por Amy em um dos episódios da série “Big Bang Theory”), porém o destaque, a meu ver, é o da “Mulher de Bath”, surpreendentemente atual em sua luta pelos direitos das mulheres.
Vale a pena e muito ler “Os Contos de Cantuária”, de Geoffrey Chaucer, mas não espere uma leitura fofa, pois requer atenção, concentração e até mesmo um certo espanto diante de muita coisa que não existe mais. Mas o que é pior é que muito do que existia naquela época continua a existir do mesmo jeito nos dias de hoje...