spoiler visualizarClayton 24/05/2020
Divertida jornada dos vícios humanos [Minha resenha no Jornal Rascunho]
Os contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer, pintam uma Idade Média atraente ao leitor moderno
Atualmente, ao menos no Brasil, os clássicos ou obras do cânone universal têm se destinado mais às prateleiras particulares (com suas lombadas caprichosamente voltadas aos visitantes) que à leitura. Quantos leitores se aventuraram nas páginas épicas da Jerusalém libertada, de Tasso, ou nas da Canção de Rolando, ou no Decameron? Tais obras parecem se prestar mais a um culto respeitosamente distanciado, ainda que seus títulos, indeléveis à ação corrosiva do tempo, cintilem sobre o colorido de caracteres dourados.
Entre elas talvez a mais ilustre das “esquecidas” seja Os contos de Canterbury, do inglês Geoffrey Chaucer, que a Editora 34 lança agora, na premiada tradução de Paulo Vizioli, mantendo o bom padrão de qualidade já conhecido do leitor, em especial dos que leram as obras dos clássicos russos, em tradução direta, ou o Fausto de Goethe, em primorosa edição traduzida por Jenny Klabin Segall.
Mas o que aliena o leitor moderno dessa obra-prima da Idade Média, bem como das demais supracitadas? Talvez a própria época que refletem, com seus hiperbólicos ideais cavalheirescos, cortesãos, ou de castidade e virtude femininas, elementos de uma sólida moral cristã anacrônica, mesmo levando-se em conta as rígidas doutrinas que vigoram nas mais sisudas igrejas e templos atuais. Ironicamente esse contraste de concepções validam a leitura desses contos.
Outra razão reside no contraste que a própria obra opera em sua estrutura, em que um imenso universo ideológico separa a fidalguia do conto do Cavaleiro da libertina astúcia do conto do Homem do Mar, assim também no abismo que separa os contos da Mulher de Bath e do Estudante, que unidos corporificam o paradoxo da alma feminina.
Nasce dessa oposição de elementos uma Idade Média complexa, cujos anseios espirituais não declinam dos impulsos carnais, uma época longe da aura de devoção religiosa que o seu teocentrismo possa ainda impingir aos mais crédulos. O resultado surpreenderá o leitor pelo prazer da leitura.
Boccaccio
As afinidades que a obra estabelece com o Decameron, de Boccaccio, são notórias. De fato, quem leu as duas obras terá a impressão de que aquela está para essa assim como a Eneida, de Virgílio, está para A odisseia e A ilíada homéricas.
O ponto de partida é o mesmo: a fim de se distraírem, um grupo de peregrinos conta, cada qual, uma história para os demais, seguindo as indicações de um líder que define a ordem. Tal como em Boccaccio, as histórias encarnam valores tão díspares como abnegação virtuosa e sanha erótica; exaltam por vezes ora a astúcia maliciosa, ora a galanteria, o ascetismo e o impulso natural. Seus contos tocam do mais sublime ao mais sórdido da alma humana, num torvelinho social que justapõe diferentes tipos num mesmo contexto. E aqui, as diferenças entre as obras despontam.
Nos dez peregrinos do Decameron não encontramos uma individuação tão marcante quanto a dos vinte e nove que plasmam vícios e virtudes na jornada chauceriana. Já no célebre prólogo deparamo-nos com uma viva pintura deles, não só como indivíduos, mas também como representantes de classes sociais à mercê da mordente pena do escritor inglês. Caracterização forte e variada que diversifica os contos, tanto na forma quanto no conteúdo, sublinhando a assinatura autoral dos personagens que os narram.
Distinta também a erudição expressa em remissões filosóficas, astronômicas e históricas, e a exuberância linguística de seus versos, em inglês médio, de rimas frequentemente emparelhadas, que o leitor terá a oportunidade de averiguar nessa edição bilíngue (com alguma dificuldade, é certo, pelo vernáculo), se não optar pela tradução, que é em prosa. Por vezes Chaucer cadencia o ritmo, elaborando em sextilhas algumas partes ou trilhando o caminho da prosa.
Chaucer elabora os contos num sistema menos rígido, permitindo que cada personagem opte pelo tema sobre o qual irá fabular, o que ocasiona divertidos entreveros entre eles, além de dar espontaneidade à sucessão de histórias.
Os contos
Se no Decameron a vitalidade física e espiritual nos contos se opunha à desolação que a peste disseminava ao redor dos dez narradores, em Chaucer esse mesmo impulso parece fazer frente ao conturbado cenário político inglês da época (implícito em certas tramas); a hipocrisia religiosa aparece nas figuras do Frade, do Beleguim e, principalmente, nessa figura ímpar que é o Vendedor de Indulgências, mas no geral os contos, em sua variedade, parecem celebrar essa vitalidade, bem como registrar os revezes da Fortuna.
No primeiro e monumental conto, a Fortuna contrapõe dois irmãos, prisioneiros do rei Teseu, no amor a uma dama, em uma singular mescla de mitologia e novela de cavalaria.
Contrastam com este os contos do Moleiro e do Feitor, não apenas na baixa extração das relações amorosas como na vulgaridade dos tipos — os amantes que logram o marido crédulo no primeiro e os jovens libertinos que lesam um corrupto comerciante após abusarem de sua filha e esposa, no segundo.
Dos dissabores de Eros também tratam os contos do Proprietário de terras e do Estudante, na forma clássica da virtuosa abnegação e fidalguia sublimando os ardores da paixão.
Em voos menos elevados (e boa dose de ironia dionisíaca) os contos do Mercador, do Homem do mar e da Mulher de Bath introduzem nos jogos amorosos o ardil traiçoeiro e a astúcia para a saciedade da carne. Aliás, a Mulher de Bath, a glória do livro, é aqui a jogadora por excelência, com seus cinco falecidos maridos, seu talento para manipular e submeter, e seu insaciável apetite erótico.
Por fim, o fator religioso, outro grande tema da obra, também justapõe elementos opostos, como o anticlericalismo (os contos do Criado do cônego, do Beleguim e, principalmente, do Frade) e a exaltação da autêntica vida cristã (os contos do Magistrado e da Outra freira). A julgar pela retratação de Chaucer ao fim da obra, suas sátiras à hipocrisia religiosa vão além de um simples reflexo das tendências da época.
Sobre a edição cabe algumas considerações. O leitor não terá nela a versão integral da obra: os contos do próprio Chaucer e do Pároco aparecem aqui resumidos. Nisso ela segue outras casas editoriais, e o fundamento é de que tais contos, de qualidade desigual, seriam de leitura maçante ao leitor moderno. O argumento procede, mas para o filólogo, o historiador ou o estudioso de Chaucer certamente tais páginas elididas suscitariam interesse. A tradução em prosa mostra-se sábia escolha, pois sendo fluente (é o caso) torna-se preferível a uma que, embora respeitando a métrica e rimas, não capte a riqueza do mais importante consolidador da língua inglesa.
O mordente retrato social de diferentes classes (antecedendo Gil Vicente), a ironia sem limites e, sobretudo, o retrato da vileza humana, tudo isso responde à reiterada pergunta do posfácio: “Por que ler Chaucer hoje?”. Se tais motivos não instigarem o leitor a tirar esta obra-prima da estante, acrescente-se mais um: para divertir-se!
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