Marc 22/10/2013
Mais um quadrinho espanhol que leio e fico extasiado. Mesmo que não sejam muitos os autores espanhóis que li, todos foram muito acima da média. É uma pena que, de modo geral, quando se fala de quadrinhos europeus, raramente a produção desses artistas entre na conta.
No caminho aberto por Maus, embora a comparação entre os dois não possa ser levada muito longe, como veremos, certamente esse aqui é um dos que mais se destacam. Apenas para orientar futuros leitores que esperam uma versão espanhola de Maus ou de Fun Home (e pior ainda de “Você é minha mãe?”), esse álbum também narra a vida do autor, mas sem cair no psicologismo de Alison Bechdel, nem na pseudometalinguagem de Maus. Ao contrário, aqui, através de um raciocínio lógico e bastante verdadeiro, me parece, o autor transfere a voz do narrador para o próprio personagem principal, seu pai.
E nesse ponto, apesar de tratar do mesmo período que Maus, a diferença é gritante. O autor não insiste em mostrar o quanto era difícil a convivência com seu pai. Prefere mostrar que de um jeito ou de outro, viver é uma sucessão de escolhas. E durante a juventude elas parecem infinitas, parecem não trazer sequer relação entre si. Os caminhos podem ser mudados e depois abandonados, simplesmente porque há muito tempo disponível. Mas à medida que envelhecemos as escolhas diminuem porque são condicionadas por outras que fizemos anteriormente. De modo que no fim da vida, ao olhar para trás, só o que vemos é um único caminho, uma sequência lógica e determinista, onde a escolha foi eliminada. E tudo parece inevitável. Creio que embora não pareça, essa é a justificativa para o autor se colocar no papel do pai e contar a história em primeira pessoa: ou como ele diz, o filho já está contido no pai, e mesmo depois de morto, este continua a viver através daquele.
Mas ainda assim, é o filho avaliando a vida do pai. E ele evita julgá-la em termos de sucesso ou fracasso. Em Maus, a mera sobrevivência, mesmo diante de todos os problemas de relacionamento entre os dois, já é suficiente para justificar o livro. Aqui, a sobrevivência já está posta, afinal o pai continua no filho, assim como este já vivia naquele momento, ao menos em possibilidade. Isso quer dizer que Altarriba não tem medo de mostrar o quanto a vida parece sem sentido mesmo depois de tudo que se realizou. E acredito que o principal motivo disso é a contradição entre os ideais que o alimentaram durante a vida, que o fizeram lutar contra os fascistas e depois tentar sobreviver durante a ocupação alemã à França, onde se refugiou. Mais tarde, voltando a seu país natal descobre que venceu a guerra, mas saiu perdedor, porque o franquismo conseguira se estabelecer. Enfim, seus ideais mostravam que era preciso lutar pela revolução, por uma sociedade mais justa, mais igualitária, mas sua história mostrou que apesar dos grandes ideais, é sobre as pessoas comuns, sobre os indivíduos que as catástrofes se abatem. Essa grande contradição, ideais de coletividade, de um lado, e por outro lado, em sua vida concreta, a necessidade de sobreviver como um indivíduo, como um átomo diante da História, com H maiúsculo, só pode ter sido o motivo de tanta tristeza no fim de sua vida.
E digo isso porque a sensação não pode ter sido outra senão a de que o tempo todo traiu aquilo que acreditava. Me parece que, ao menos para pessoas com valores morais elevados, como ele se via, não pode haver nada pior do que sentir que traiu tudo o que acreditava. Infelizmente, e isso aparece bastante desde o início da história, jamais houve uma reflexão aprofundada para tentar concluir se aqueles valores eram verdadeiros ou não. Parecia o correto a se fazer, lutar por uma sociedade mais justa, com menos pobreza, mas nunca houve um método para se chegar lá. Sabia apenas que era preciso lutar, e foi o que fez durante toda a vida. Mas esqueceu, quando olhava para trás, que só o fez porque havia paixão, o elemento essencial e que evapora logo depois que damos o passo a que fomos impelidos.
A arte de voar é, portanto, a retomada da capacidade de escolha na vida. E mesmo que essa escolha seja por uma solução drástica e impossível de voltar atrás. Mas se pensarmos que seu pai via o quanto essa capacidade lhe fora retirada com o avanço da própria vida, da idade, a ponto de sentir-se um mero passageiro — ele que sempre estivera no controle, pilotando e decidindo o caminho e a velocidade —, podemos até não aceitar, mas o raciocínio não chega a ser absurdo. Naturalmente que poderíamos enveredar por uma longa discussão sobre o absurdo do suicídio como resposta ao absurdo da vida, mas deixo essa questão para os leitores, assim como tenho a minha.
Pode ser que ninguém concorde com minha leitura, mas esse álbum me pareceu com uma carta de amor e compreensão. Tendemos sempre a olhar a vida dos outros avaliando e buscando seus erros, ainda mais quando se trata de nossos pais. É uma tentativa de compreender o horror da vida que termina, de contextualizar suas escolhas. A despeito da maneira como a possibilidade de escolha é retomada, esse é um trabalho que demonstra a raríssima capacidade de alteridade.