Leonardo 30/07/2013
Música para os ouvidos
Enquanto escrevo esse texto, ouço Maria Callas cantando Mme. Butterfly, de Puccini. É a primeira vez que deliberadamente ouço Maria Callas. É também a primeira vez que deliberadamente ouço ópera, com exceção da apresentação ao vivo há uns três anos aqui no Teatro Tobias Barreto, de Carmina Burana, de Carl Orff. Sou assim mesmo, altamente influenciável.
Ao ler Bel Canto, de Ann Patchett, lamentei sinceramente não ser um apaixonado por ópera. Minha experiência literária teria sido deveras potencializada. Bel Canto, descobri depois, é uma espécie de escola de canto que conheceu seu auge no início do século XIX e que se destacava pelo virtuosismo do canto, em detrimento do drama e do canto expressivo. Já no século XX, Maria Callas foi uma das responsáveis por “ressuscitar” o Bel Canto, com seu inigualável talento.
O livro de Ann Patchett conta a história de uma soprano, Roxane Coss, que é a maior cantora lírica do seu tempo. Ela foi contratada para uma apresentação particular num país não denominado da América do Sul. Este país promoveu um jantar na casa do Vice-Presidente para comemorar o aniversário de Katsumi Hosokawa, dono de uma das maiores empresas de eletrônicos do mundo. O objetivo era tentar convencer o empresário japonês a instalar uma fábrica ali. O executivo se recusava a aceitar o convite até que alguém, sabedor da paixão dele pela ópera, informa que contrataria Roxane Coss em sua homenagem. Ele muda de ideia e, na festa estão presentes personagens da alta sociedade do país e, principalmente, empresários e investidores de diversos outros países, interessados nos efeitos da possível instalação da fábrica no país.
Quando Roxane Coss acaba sua apresentação, as luzes se apagam e estão todos tão enfeitiçados pela voz da diva, que demoram a perceber que algo pode estar errado. As luzes logo se acendem e os mais de duzentos convidados, incluindo o Vice-Presidente do país, anfitrião da festa, veem-se cercados por homens armados. Alguns homens, na verdade, já que muitos dos terroristas são rapazes quase imberbes.
O que deveria ser uma ação rápida do grupo terrorista – sequestrar o Presidente – acaba ganhando contornos dramáticos. A intenção deles era invadir o local, sequestrar o presidente e sumir dali em não mais que sete minutos. Só que o presidente não está. Ficou em casa vendo a novela, uma pequena obsessão particular sua.
Os convidados tornam-se reféns e o que deveria se resolver rapidamente vira um quase insolúvel imbróglio. Os terroristas têm exigências demais, o governo tem flexibilidade de menos. A situação se arrasta, o tempo passa, e vamos acompanhando o surgimento de relacionamentos – amizade, amor, compreensão, admiração, respeito – entre pessoas que sequer falam o mesmo idioma.
Há duas características bem marcantes no livro de Ann Patchett: os personagens são exagerados, quase caricatos, e os personagens têm sentimentos, muitos sentimentos (como você pode perceber, são características bem relacionadas entre si).
O executivo japonês, Katsumi Hosokawa, é apaixonado por ópera, e possui uma sensibilidade para a música que só encontra rival com a sua discrição, com o seu jeito reservado de quem batalhou muito para construir um império. Ao mesmo tempo, este homem tão inteligente e astuto jamais foi capaz de aprender inglês ou qualquer outro idioma. Por conta disso, ele, que viaja todo o mundo, acabou encontrando um espelho seu, a sua voz. É Gen Watanabe, um jovem poliglota que é realmente poliglota. Fala russo, inglês, japonês, chinês, italiano, espanhol, dinamarquês, alemão, português, grego, e muitos outros idiomas. Um prodígio.
Roxane Coss é quase uma sereia. Ela é uma mulher pequena, bonita, mas sua beleza se torna algo sobrenatural quando ela canta. Não há quem fique incólume, mesmo os sequestradores. Ela enfeitiça até quem nunca havia ouvido ópera. Vejam um pequeno parágrafo abaixo:
“Em pouco tempo, os dias ficaram divididos em três estados: a ansiedade por ouvi-la cantar, o prazer de ouvi-la cantar e a reflexão sobre o que ela cantara.”
Esses são apenas três exemplos. Há também um padre que é o protótipo do mártir, há, entre os sequestradores, garotos dotados de imensos e recônditos talentos, há outro executivo que se revela um grande pianista…
Apesar de parecer que o livro mergulha em clichês, não ocorre assim. A autora resolveu, ao contar uma história difícil – trata-se de um longo sequestro –, mergulhar nos personagens, e aqui entro num grande mérito do livro: são apenas 286 páginas, mas conseguimos conhecer e nos interessar por vários, vários personagens mesmo. Claro, ela apoia-se em algumas poucas características físicas e psicológicas para delinear “tipos”, mas os personagens respiram. Se o centro das atenções é Roxane Coss, Gen Watanabe não fica atrás, já que ele se vê incumbido de traduzir tudo para todos, chegando mesmo a intermediar declarações de amor. Acompanhamos o padre, o francês apaixonado pela sua esposa, duas garotas inesperadas, um general com herpes-zóster e que joga xadrez, um negociador suíço da cruz-vermelha, um russo apaixonado, Katsumi Hosokawa, um garoto terrorista que sonha em cantar, outro que sonha em aprender xadrez…
Ann Patchett é habilidosa, e sabe distribuir a ação entre os diversos personagens sem picotar o livro, sem parecer que ela quis estabelecer “cotas de participação”. Abaixo, um pequeno exemplo do bom gosto das suas referências, e de como a sua prosa é despojada, mas elegante:
“- Roxane Coss não está lá fora, disse em sueco. A voz saía difícil, as consoantes meio presas entre os dentes. – Ela não está lá fora!
A fala do pianista estava tão indistinta que mesmo Gen levou um minuto para reconhecer a língua. Seus conhecimentos de sueco vinham basicamente a partir dos filmes de Bergman. Ele havia aprendido quando estava na universidade, juntando os sons com as legendas dos filmes. Em sueco, ele só conseguia conversar sobre assuntos sombrios.”
Pode parecer estranho, mas Bel Canto é um livro sobre amor, sobre relacionamentos. Reconheço: emocionei-me durante a leitura. Mais de uma vez. E, clichê dos clichês, uma das vezes foi com um Je T’aime. Isso mesmo. Je T’aime. Não, não me envergonho disso.
Somente depois de ter lido o livro, pesquisando para escrever esta resenha, descobri que a história baseia-se na crise de Lima, ocorrida em 1996. A história é praticamente a mesma, por isso aconselho você a somente pesquisar sobre esta crise depois de ler o livro. Basicamente, um grupo revolucionário – Movimento Revolucionário Túpac Amaru invadiu a casa de um embaixador japonês durante uma festa e fez centenas de reféns. Depois de libertar quase todos eles, os sequestradores apresentaram diversas demandas, o governo não cedeu, um negociador da cruz vermelha apareceu e a situação foi se prolongando mais do que seria imaginável.
Descobrir que a situação foi “inspirada em fatos reais” não tirou o brilho do livro. Para mim, aumentou. A autora mostrou-se criativa, sensível, habilidosa, capaz de contar uma história fabulosa, que emociona, diverte e nos deixa apreensivos, tensos e, principalmente, com vontade de ouvir ópera.
site: http://catalisecritica.wordpress.com