Carlozandre 28/06/2013
Memórias baguais do cárcere
Futebol e a construção de uma identidade fraturada entre o isolamento e a amplitude são os temas centrais de O Último Minuto (Cia. das Letras, 224 páginas, R$ 38,50), memórias do cárcere de um grosso missioneiro, terceiro romance de Marcelo Backes.
O Último Minuto é um romance que se vale do recurso de uma voz narrativa emitida do cárcere. Outros livros já utilizaram esse tipo de artifício para criar um tipo de estrutura ideal da enunciação narrativa. O encarcerado tem à sua frente uma sucessão de dias iguais sem mudanças significativas no horizonte, não se move, não se desloca, então todo seu esforço enquanto narrador está condensado na tentativa de compreensão da situação que o levou até a cadeia. Contar também é uma forma de fazer as horas escorrerem. O prisioneiro, na literatura, é uma voz lançada sempre ao passado para tentar tornar menos intenso o fardo do presente, seja pela sublimação do tempo seja pela compreensão e reconfiguração da discrepância entre ele e o regime que o encarcerou.
Como o herói encarcerado é também um "homem revoltado", muitas vezes os livros que o tornam protagonista são contundentes denúncias de regimes opressores, como o magnífico O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler. Se denúncia há no romance de Backes, ao qual não falta raiva em sua superfície, é uma denúncia ao isolamento da província e às ilusões sem base da grande cidade. O prisioneiro criado por Backes é Yannick Nasyniack, apelidado de João, o Vermelho, descendente de alemães e russos e natural da comunidade de Linha Anharetã, no interior missioneiro – a mesma localidade fictícia da qual partem (e às vezes para a qual retornam) os personagens de Backes desde Estilhaços (2006). Trancafiado em um presídio no Rio devido a um crime que se delonga em revelar, Yannick, conversando com um jovem missionário católico, revisita sua vida na pequena Anharetã. O lugar é retratado nas memórias do prisioneiro como um rude enclave no qual a dureza inerente do campo engendra uma vida em que, apesar da aparente solidez da ética silenciosa do trabalho, a violência é vista com naturalidade.
Como já fizera nos romances anteriores, maisquememória e Três Traidores e uns Outros, Backes trabalha com o choque nada ameno entre os mundos do cosmopolitismo e da rústica ética agrária do trabalho. Fascinado com a possibilidade de viver na Europa, Yannick não hesita em abandonar mulher e filho e migrar para a Suíça como trabalhador braçal. Por lá, sua nacionalidade brasileira e sua experiência breve como ex-jogador de várzea abrem portas para que se torne técnico de futebol – profissão com a qual retorna ao Brasil.
É na voz de Yannick que reside o centro da narrativa e o principal desafio apresentado ao leitor por Backes. Embora filtrada pelo missionário, que se deixa contaminar por ela a todo momento, a voz de Yannick é a de um homem inteligente escondido atrás de uma armadura de rudeza tão afetada e desagradável como verdadeira. Menos interessado na trajetória de Yannick do que em sua visão de mundo, o romance se espraia com gosto pelas digressões do personagem, pontuadas por ditos populares e tiradas do futebol como metáfora. Aqui reside um dos desafios: uma das explicações para uma suposta ausência do futebol na literatura é sua onipresença no discurso cotidiano. De poucos assuntos se escreve tanto no Brasil, e muitas das diatribes e invectivas de Yannick não se elevam acima do uso desgastado de sempre de expressões recorrentes da crônica esportiva. Bem como suas manifestações a respeito de seus conterrâneos, da mulher, do filho, dos jogadores que treinou ou treina e mesmo a respeito do missionário com quem está interagindo são discursos de um conservadorismo exagerado ao limite da sátira. A linha demarcatória, no entanto, é sutil.
Só a partir da segunda metade do livro vê-se o homem contraditório que é Yannick, dotado de insuspeitada humanidade e mais disposto ao diálogo com o jovem religioso que termina por se tornar já no fim uma voz em contraponto. Nesse processo de aproximação entre o missioneiro e o missionário, fica claro que o centro do romance é, na< verdade,a relação conflituosa que Yannick tem com o filho que abandonou e jamais recuperará. E se o futebol fracassa em providenciar essa aproximação redentora com o filho (perna de pau que o pai insiste em tentar manter na titularidade do time que treina), será a ponte entre os dois interlocutores que conduzem o narrado – o missionário só começa a ser aceito pelo condenado quando aparece vestindo a camiseta vermelha do time para o qual Yannick torce.
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