sophialudwigb 13/04/2023
Édipo, Narciso e O mal-estar na cultura
Hoje, homens e mulheres estão à deriva, sem nenhuma âncora, e não existe autoridade, ainda que castradora, que lhes dê um senso de direção. Nessa condição, os indivíduos se confrontam com a tarefa de se reinventar dia após dia em busca de um meio de salvação que devem descobrir por si mesmos.
A infinita liberdade de que os indivíduos usufruem em nossa época assinala uma inversão da prescrição ética ? não nos pedem mais para adiarmos o prazer a fim de construirmos um futuro melhor para os que virão depois de nós (Kant), mas, em vez disso, somos estimulados a Usufruir Agora (Sade).
Existe uma conexão entre a atual epidemia e a vida nas sociedades pós-industriais baseadas no narcisismo e no mito do consumo. Bulimia e anorexia representam a expressão patológica desses dois mitos de nossa época. Os bulímicos manifestam o puro mito do consumo ? abocanham, mastigam e trituram tudo. Mas o vômito prova a impossibilidade de preencher o buraco que fica no cerne de seu ser e revela a ilusão que sustenta o Discurso do Capitalista ? tudo pode ser comprado, menos o amor. O amor é um presente inestimável, não um objeto lançado no mercado para ser vendido pela maior oferta, ele é totalmente livre. Os anoréxicos, por outro lado, rejeitam a lógica do consumo. Devotam-se ao culto narcisista do corpo esbelto. É um culto privado, autista e antissocial, um culto mortal que leva a uma irreversível perda de peso. É um culto perverso da autoimagem que afeta não apenas os anoréxicos, mas todo o corpo social.
É a nova forma histórica assumida pela falsa democracia do mercado nos países industrializados mais avançados ? o sujeito é literalmente empanturrado de prazer, mas ao mesmo tempo instigado a consumir mais e mais, de modo que o consumo em si abre espaço para outra pseudonecessidade. É o que Lacan define como a astúcia do Discurso do Capitalista. O que nos fazem esquecer é que nos seres humanos a necessidade não é um déficit a ser corrigido, mas a condição de toda criação.
A experiência inebriante da intimidade, talvez, quem sabe, da solidariedade. Essa mudança, que já está ocorrendo, significa: cada pessoa não está mais sozinha. E não foi preciso muito esforço para consegui-lo, pouco mais que trocar o ?t? pelo ?d? na desagradável palavra ?solitário?. Solidariedade por encomenda, que dura enquanto durar a demanda (e nem um minuto a mais). Solidariedade nem tanto em compartilhar a causa escolhida como em ter uma causa; você, eu e todo o resto de nós (?nós?, o povo na praça) com um propósito, e a vida com um significado.
Prazer, conforto, conveniência e redução do esforço, satisfação instantânea, sonhos virando realidade e atenuando realidades demasiado incômodas para serem descartadas como sonhos (ou fantasmas, ou produtos da fantasia) ? são essas as promessas, as apostas, os estratagemas de uma economia dirigida pela ganância e operada pelas compras. O fazer e desfazer amizades é apenas exemplo de uma estratégia aplicada universalmente. Você a formulou do modo correto ao lado da última promessa, dessa vez de tornar disponíveis (nas lojas, obviamente), sob encomenda, as doces memórias da infância: chega da laboriosa ?busca do tempo perdido?, na verdade, chega de tempo perdido; não é preciso mais um gênio como Proust para encontrá-lo, ressuscitá-lo e recuperá-lo ? um cartão de crédito pode muito bem dar conta disso, obrigado!
Será que nós, consumidores forçados, somos crédulos? Muito provavelmente sim. Mas mudos? Não necessariamente. Quem em sã consciência não preferiria a facilidade ao trabalho duro? A promessa consumista chegou na crista de anseios seculares; pode ser uma falsa promessa, enganosa e ilusória, mas de forma alguma se pode considerá-la sem atrativos, e sem dúvida ela não está fora de sintonia com uma ?predisposição natural? (Freud apontou a indolência inata do ser humano como uma das principais razões da necessidade de coerção; despidos de poderes coercitivos, os gênios do marketing conseguiram substituir a coerção pela sedução).
Afinal, uma vida para o consumo é vivenciada como a suprema expressão da autonomia, da autenticidade e da autoafirmação ? os atributos (na verdade, as modalidades) sine quibus non do sujeito soberano. É por essa razão que a orientação consumista consome (ou pelo menos ela taxa pesadamente) a energia vital que poderia ser empregada a serviço dos outros interesses humanos aos quais se recorre ? compromisso, devoção, responsabilidade.
A crescente insegurança a respeito da identidade que é típica da sociedade pós-moderna e as constantes humilhações a que nossa autoimagem é submetida causam o que Alain Ehrenberg chamou de ?o peso de ser eu mesmo?. Passamos de uma sociedade baseada na obediência e na disciplina a uma sociedade que valoriza e promove de modo incomum a crença de que, em todos os níveis, tudo é possível. Édipo, o símbolo da sociedade patriarcal, e do sentimento tipicamente burguês de culpa, é substituído pela vaidade, isto é, por Narciso e seu fascínio pelo espelho. Narciso traz a liberdade, mas também um crescente sentimento de vacuidade e impotência.
Freud reescreveria O mal-estar na cultura levando em conta o fato de que nossa cultura não mais nos encoraja a reprimir e postergar o prazer, mas, em vez disso, nos estimula a desfrutar livremente todo o prazer e todos os bens que nossa sociedade de consumo pode oferecer.